Em que o mundo se abre
aos que por acaso se acham,
mas se fecha a quem os segue.
Paulo acordou vagamente e já era meio-dia. Cantarola a
água do chuveiro, Odete também. Ele se retorce um pouco mais no prazer do sono.
Na véspera, tensas nuvens se acumularam na paisagem cinza de seu casamento com
Odete. Parecia que, mais uma vez, não viria a tempestade... Sempre assim, esse
tempo todo: nem um desaforo, uma briga, um bater de porta sequer... Mas, desta
vez, choveu alegria na fantasia da madrugada. Agora o sol brilhava. Enfim, um
domingo gostoso!
Odete sai do banheiro ainda coberta de espumas, Vênus
classe média démodé, mas inteira.
"Dormiu bem, querido?", sorri, muito íntima. Aquele
"querido" acorda Paulo de vez. Consciente, tenta voltar a dormir.
Precisa de tempo, pressente que alguma coisa mudou. Enquanto resmunga, Odete
dispara a falar que o dia está lindo, que mês de maio no Rio é o máximo, que
não dá pra ficar em casa, que o coração lhe bate maior que o peito... "Vamos
dar uma caminhada na praia?". Paulo percebe que foram longe demais.
Virando de bruços se encolhe: "Hummm, acho que vou dormir mais um
pouco...". Para Odete, tudo bem: "Vou dar uma rodada. Vou ver se
encontro alguém conhecido". Paulo, quase dormindo, não deixa de levantar a
sobrancelha...
Enquanto Paulo finalmente saía da cama, Odete iniciava
seu desfile na praia. Após flutuar, leve e lenta, do Alto ao Baixo Leblon, agora
caminhava suave, se espalhando na pista, se envolvendo com a fauna, acenando a
vizinhos e conhecidos, bilubilando as criaturinhas do Baixo Bebê, notando as
ondas dos surfistas ao longe, prestando atenção nos PMs troncudos, se dispondo
aos olhares dos que tentavam controlar sua meio desnorteada alegria.
|
Paulo, na pista |
Paulo resolveu andar na praia também, se conseguir achar
aquele velho tênis surrado... Já Odete,
passando o Jardim de Alá e um pouco mais calma, deixou começar em sua mente um merecido
balanço da noite passada: a comemoração forçada no Mistura Fina, o desinteresse
evidente de Paulo, o prenúncio de mais um momento frustrante em sua vida
frustrada. E como tudo mudou quando se decidira mudar, ao se ver no espelho, o
corpo gasto, a alma rota. Ali, no
banheiro do bar, recuperara a presença, talvez a existência... Daí, viria o grisalho
de barba, a troca de olhares, a fugida para casa, a decisão de não deixar que
fosse mais uma noite morta em sua vida.
A reação de Paulo lhe dera a certeza, mas a lembrança do outro é que lhe
dera o estímulo...
Seguiu carregada pela nuvem de pensamentos até o Posto 9.
Foi quando viu a figura, logo ali à frente: o grisalho de barba!... Terminava
um papo qualquer. Deixou um abraço pelo meio e virou-se contente rumo ao
Leblon, justo quando Odete chegava, sem ter podido refrear o andar (ou talvez o
entusiasmo), e os dois se encontraram frente a frente, olhos nos olhos, quase
mãos nas mãos... Pararam e ficaram. Tudo em volta seguia seu ritmo. Ficam
parados por forças que não se anulam, se atraem.
|
Odete, na prosa |
Falaram sobre tudo ou nada. Os detalhes do encontro fortuito
da véspera, o que cada um fazia na vida, um pouco da história de cada, o tempo,
o dia, o mar... Muita coisa a dizer, um borbulhar de lembranças, anseios,
conceitos, propostas, misturados nas mentes, fluindo sem pressa através dos
olhares. O tempo passando...
Em volta o ritmo seguia igual. Ninguém reparava no casal
de meia idade, classe média Zona Sul, na pista da Vieira Souto, no correr da
tarde de domingo. Mas, ao longe, a quase uma quadra, escondido pelos cocos do
quiosque, encoberto pela turma da política, um pouco pálido apesar do sol ainda
forte, um homem olhava, cabisbaixo, o casal.
Paulo agora tinha certeza: alguma coisa ia mudar profundamente
em sua vida. E, mais ainda, na vida de
Odete.