segunda-feira, 1 de julho de 2019

Preâmbulo simplificadinho


Fazendo jus à sua inserção na Rodada Carioca, suposta (dado que nada mais o comprova) série literária, eis que ressurge, de ferruginosos arquivos digitais ou de hipotéticas nuvens de dados (e agora sob outra forma, que isto sempre lhe foi peculiar), esta consistente (até mesmo porque não lhe dão sossego...) “Odete nunca foi santa”.

Tal e tão tortuoso roteiro está descrito (mas com bastante parcimônia, para não cansar ainda mais o leitor, que todos têm hoje pouco tempo e demais demandas) após o final desta nova versão (em Odete retorna do limbo) da mesma “Odete nunca foi santa” de sempre, e mais uma vez grátis. Acrescento, para efeitos meramente egoicos, que esta publicação passa a compor o acervo de Guina&dita, no seu selo Digital, ainda que isto não seja tanta coisa assim...

Simplificando: o que um dia foi texto em livro e passou a folhetim virtual aqui mesmo neste espaço, torna-se agora, mantido o conteúdo, um texto em capítulos, e isto no sentido o mais direto possível. 
Continua sendo, salvo engano, apenas Literatura.
 

Então, a quem leu, proponho que releia.
A quem não, convido-o/a a sim!

domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 1 - Uma noite passada


Em que se vislumbram, na névoa do bar,
possíveis conflitos e antigos amores, 
não necessariamente nessa hora...



"Recheio de bar é dor"...

Paulo sussurrou, balançando discretamente a cabeça: "o poeta tem razão!".

Pisou sem volta o derradeiro degrau e entrou no Mistura Fina. Quando a fumaça subiu dos olhos à mente, duvidou: "Devo ter inventado esse verso..."

Claro que Odete não ia perder a desculpa do aniversário de casamento para carregá-lo para algum lugar enjoado... Ele é que ficava enjoado nestas datas desnecessariamente repetidas. Perguntava à memória: "quando mesmo tinha acabado o casamento?"... E ela ainda comemorando o início, como se a intenção valesse para sempre: a ilusão em vez da realidade.

Paulo
Sentou, sorriu para ela. Bebeu um uísque, sorriu de novo. Embrulhada em sorrisos seria mais fácil engolir o amargo da noite.  Odete também não parecia bem, mas enganava melhor. Talvez tivesse fé. Para ele, era apenas teimosia.

Quando ela foi ao banheiro ("toalete", ele detestava essas enganações afetadas) Paulo olhou a escuridão. Conseguiu ver vozes no meio do burburinho. Alguns vultos passaram da névoa à vida. Um sujeito de barba falava alto, voz de barítono cansado. A loura chamava atenção, mas, o que lhe importava?...

As mulheres... Restava algum interesse por elas, embora lhe bastasse a conveniência de um caso, com uma funcionária ou outra na empresa. Não questionava mais o valor (ou o custo) daquelas conquistas. Apenas exercitava seu poder de fazê-las.

A voz do grisalho de barba ficara irritante. Se pudesse, preferiria prestar atenção ao sax. Odete voltava, tentando se por empinada. "Um pouco rodada, mas não está tão mal assim...", admitiu Paulo vendo Odete parar, meio que interrompendo o caminho, olhando firme para o lado. Ela pareceu estremecer, se não foi efeito do uísque. Abrupta, Odete quase se derruba a seu lado.

Paulo ouve o tilintar do gelo. O copo é frio, o suor também. "Esse ar está forte demais", critica em silêncio, acompanhando o olhar agitado de Odete, que encontra o mormaço do olhar do grisalho. Naturalmente Paulo segura sua mão. "Está meio estressada", garante, "preciso dar mais atenção à coitada".

Odete gira a cabeça em várias direções, mas não acompanha o vai-vem dos garçons. Seus olhos passam sempre pelo mesmo ponto. Paulo continua achando o ambiente muito chato... É a loura agitada que muda a cena, tentando agarrar-se a alguém. A voz do grisalho cresce contra ela. Odete continua inquieta. Paulo se incomoda ainda mais: "Essa loura é uma mala. E o cara também...".

Odete
O grisalho se vai, carregando a mala. Odete parece se aquietar. Algum tipo de alívio se junta à fumaça. Sente prazer em apenas olhar o salão. Quase se assusta com a risada firme de Odete: "Que foi?". "Nada", ela diz, olhando bem para ele. Paulo não percebe a graça. Nem gosta daquele falso jazz que tocam agora.

Aquele olhar... Em tempos antigos, quando talvez fosse um tanto romântico, quando algo realmente ainda os unia, poderia chamar de ternura. Se fosse, passara com o tempo.

Afogou o pensamento num gole. Pedindo outro uísque e prestando de novo atenção à sua volta, lembrou: "A noite é uma criança..."


Cap. 2 - Uma manhã de luz

Em que um antigo amor,
seguindo assobios e dúvidas,
procura na noite a luz da manhã.





        Paulo tinha, há muito, certeza: comemorações deveriam ser feitas por até, no máximo, cinco anos. Ou, para os mais heroicos, além de cinquenta... "No meio, não é purgatório, é inferno", dizia. Tanto é que esquecera a data. Mas Odete continuava registrando teimosamente a duração do fracasso. Agora, também esta noite, Mistura Fina, merecia ser esquecida.
           Sobreviventes, esperavam a mercedes. O manobreiro volta a pé. "A droga da chave rachada, finalmente quebrou", grunhiu Paulo.  Aceitou de má vontade as desculpas do gerente da casa. Pediu logo um táxi, a noite já estava velha demais para ele...
            Além de tudo não estava gostando nada do sorriso meio trânsfuga de Odete. "Será que tem a ver com o grisalho de voz rouca? Será que ela ainda tem desses frissons?" Olhou de lado, Odete entrava animada no táxi. A noite resistia em seus suspiros.  
            O motorista assobiava na madrugada vazia. Paulo sentiu um pequeno esgar no canto da boca. Claro, alguma coisa estava errada. Faltava a Odete aquele alheamento de sempre. Que deitasse a cabeça em seu ombro, então, Paulo realmente não esperava... Respirou mais forte o denso ar da Lagoa. Manteve a fleuma, à custa do ombro bem rígido, desconfortável.  
            O táxi subia no assobio as curvas do Alto Leblon. Paulo, encolhido no canto, cada vez mais sem jeito. Curva à direita, aliviava o incômodo. Curva à esquerda, mais perto Odete chegava de seu coração engessado.
            Chegou e subiu, rápido. Tirar a roupa e a náusea, trocar o sabor do passado por um falso frescor, achar o caminho da cama...   
Odete!... "Que é isso, meu Deus?", quase lhe escapa o grito, no susto. Odete, apenas calcinhas, à soleira da porta, mão no batente, braço ostentando o sutiã pela alça, olhos safados, boca borrada, seios arfantes, quadris no compasso do assobio do táxi... 
Odete, à noite
     Pouco tempo teve para ficar chocado. Não podia recuar. Avançou, mais curiosidade que desejo... Odete ondulou os braços à sua volta, sem se importar com seus olhos perplexos. Girou e o conduziu direto para a sempre monótona cama do casal. 
        Paulo a seguiu e até respondeu com afagos canhestros, numa espécie de reflexo, a seus toques já íntimos. Deitou, foi deitado, deitaram... No escuro, mantinha os olhos abertos. Sentiu reações pelo corpo. Odete não parava, com a mão ou com a língua, ativando os sentidos em superfícies um tanto esquecidas. "Não vai dar certo", pensou, estremecendo três vezes.  
Paulo, de manhã
       Odete mantinha o contato. Paulo perdia um pouco o controle, mas sua mente treinada buscava uma causa: "seria a bebida?"... Com a língua de Odete num ponto sensível, abandonou a questão.  Tentou recuperar o raciocínio. "Só se foi aquele assobio meloso...", supôs, retorcendo-se pela cama, suas mãos assumindo autonomia, descendo dos seios a outras paragens.
       Desistiu de explicar a si mesmo as mudanças de Odete. Colou mais seu corpo no dela, empunhando um pouco da força de outrora. Pensou em outra coisa, para ocupar a cabeça: "Até que o sujeito do bar, o de barba grisalha, não era de todo antipático..."
A luz da manhã
            ---
O sol se levanta, invadindo o espaço das sombras. Mas, sempre paciente parceiro da vida, se esconde por trás das cortinas... 

Cap. 3 - Uma queda na tarde


Em que o mundo se abre
aos que por acaso se acham,
mas se fecha a quem os segue.



Paulo acordou vagamente e já era meio-dia. Cantarola a água do chuveiro, Odete também. Ele se retorce um pouco mais no prazer do sono. Na véspera, tensas nuvens se acumularam na paisagem cinza de seu casamento com Odete. Parecia que, mais uma vez, não viria a tempestade... Sempre assim, esse tempo todo: nem um desaforo, uma briga, um bater de porta sequer... Mas, desta vez, choveu alegria na fantasia da madrugada. Agora o sol brilhava. Enfim, um domingo gostoso!


Odete sai do banheiro ainda coberta de espumas, Vênus classe média démodé, mas inteira. "Dormiu bem, querido?", sorri, muito íntima. Aquele "querido" acorda Paulo de vez. Consciente, tenta voltar a dormir. Precisa de tempo, pressente que alguma coisa mudou. Enquanto resmunga, Odete dispara a falar que o dia está lindo, que mês de maio no Rio é o máximo, que não dá pra ficar em casa, que o coração lhe bate maior que o peito... "Vamos dar uma caminhada na praia?". Paulo percebe que foram longe demais. Virando de bruços se encolhe: "Hummm, acho que vou dormir mais um pouco...". Para Odete, tudo bem: "Vou dar uma rodada. Vou ver se encontro alguém conhecido". Paulo, quase dormindo, não deixa de levantar a sobrancelha...

Enquanto Paulo finalmente saía da cama, Odete iniciava seu desfile na praia. Após flutuar, leve e lenta, do Alto ao Baixo Leblon, agora caminhava suave, se espalhando na pista, se envolvendo com a fauna, acenando a vizinhos e conhecidos, bilubilando as criaturinhas do Baixo Bebê, notando as ondas dos surfistas ao longe, prestando atenção nos PMs troncudos, se dispondo aos olhares dos que tentavam controlar sua meio desnorteada alegria.
Paulo, na pista


Paulo resolveu andar na praia também, se conseguir achar aquele velho tênis surrado...  Já Odete, passando o Jardim de Alá e um pouco mais calma, deixou começar em sua mente um merecido balanço da noite passada: a comemoração forçada no Mistura Fina, o desinteresse evidente de Paulo, o prenúncio de mais um momento frustrante em sua vida frustrada. E como tudo mudou quando se decidira mudar, ao se ver no espelho, o corpo gasto, a alma rota.  Ali, no banheiro do bar, recuperara a presença, talvez a existência... Daí, viria o grisalho de barba, a troca de olhares, a fugida para casa, a decisão de não deixar que fosse mais uma noite morta em sua vida.  A reação de Paulo lhe dera a certeza, mas a lembrança do outro é que lhe dera o estímulo...  


Seguiu carregada pela nuvem de pensamentos até o Posto 9. Foi quando viu a figura, logo ali à frente: o grisalho de barba!... Terminava um papo qualquer. Deixou um abraço pelo meio e virou-se contente rumo ao Leblon, justo quando Odete chegava, sem ter podido refrear o andar (ou talvez o entusiasmo), e os dois se encontraram frente a frente, olhos nos olhos, quase mãos nas mãos... Pararam e ficaram. Tudo em volta seguia seu ritmo. Ficam parados por forças que não se anulam, se atraem. 

Odete, na prosa
Falaram sobre tudo ou nada. Os detalhes do encontro fortuito da véspera, o que cada um fazia na vida, um pouco da história de cada, o tempo, o dia, o mar... Muita coisa a dizer, um borbulhar de lembranças, anseios, conceitos, propostas, misturados nas mentes, fluindo sem pressa através dos olhares.  O tempo passando...


Em volta o ritmo seguia igual. Ninguém reparava no casal de meia idade, classe média Zona Sul, na pista da Vieira Souto, no correr da tarde de domingo. Mas, ao longe, a quase uma quadra, escondido pelos cocos do quiosque, encoberto pela turma da política, um pouco pálido apesar do sol ainda forte, um homem olhava, cabisbaixo, o casal. 


Paulo agora tinha certeza: alguma coisa ia mudar profundamente em sua vida.  E, mais ainda, na vida de Odete.



Cap. 4 - A noite pesada

Em que o encontro do dia
antecipa o vazio da noite
e o primado das trevas.



O sol desce atrás do Dois Irmãos. Ainda assim, brilha na noite do Rio. Odete agora prescinde do sol, brilha por si.  

Alberto e Odete, no dia.
Volta para casa, o olhar fixo em nada, olhos iluminando o caminho. A fonte da luz é a lembrança de Alberto, o sorriso de Alberto, a voz de Alberto, o corpo de Alberto, a descoberta de Alberto... De um desconhecido grisalho de barba a um homem completo, um homem exato, um homem real. 

Apenas algumas horas de conversa com ele e Odete é uma nova mulher, uma mulher apaixonada. Lembrou do encontro na noite, a repentina certeza, o sentimento ocupando seu corpo, a paixão fulminante. A árvore e o raio. A valorização de sua imagem no espelho não fora casual. Era a percepção preliminar do encontro. A sedução de Paulo na madrugada reafirmou sua capacidade esquecida, o sexo reacendendo a chama da vida.

Paulo, à espera
Ao chegar em casa, Paulo está sentado, mais sombrio que a sala. Parece à espera. Usa o velho tênis surrado... Antes mesmo das perguntas a compreensão. Odete percebe que Paulo já sabe de tudo: "Você esteve lá, não é?"

Paulo parece vazio por fora. Não responde. Se sente dor, não grita, recolhe-se. Mas a tensão rasga o ar à sua volta. Aos poucos cresce um tremor das entranhas e o terremoto sai pela boca: "Sua puta! Eu vi você estatelada na frente do sujeito! Há quanto tempo vocês se conhecem? Que história é essa?"

Odete resiste à pressão: "Calma, vamos conversar..."

Explode o vulcão: "Que trepada foi aquela? Tava pensando nele, é?...". A lava transborda: "Quer me sacanear? Me fazer de palhaço?". E vai se resfriando: "Todo esse tempo juntos... Mereço mais respeito!". Uma dura e ressentida crosta se formava... 

Odete, líquida, tenta ficar fria: "Você não pode falar assim..." Mas subiu-lhe uma corrente profunda e quente: "Você, com suas putinhas da empresa, não tem moral para falar!". Subindo à superfície, a água ferve: "Trepei com ele na cabeça, sim. Só te usei, como você fez tantas vezes comigo."

Odete, vagando
Do encontro dos dois, névoa... Choque térmico, a frieza de um, a raiva do outro. Variações de temperatura e pressão. Rajadas de ventos, estranhas calmarias, inquietude. Entre eles, e entre eles e o mundo, um manto silencioso e espesso. É visível a impossibilidade de enxergar os caminhos, sequer os vislumbres. As certezas escapando das trilhas.

A conversa termina de forma banal. Vagos comentários sobre pessoas distantes, eventos antigos, tarefas caseiras... O silêncio assume seu posto. Na casa, circulam os fantasmas. Seus corpos pastosos ocupam os mesmos lugares de tantos momentos, o ambiente volta a ser a mesma natureza-morta há tanto exposta ao nada. A distância é de novo a medida de afeto entre eles.

Agora tudo isso é cenário... Ocupam a cena, nos palcos interiores de cada, romances e dramas.

O programa não inclui mais comédias.

Talvez entre em cartaz alguma tragédia...