domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 2 - Uma manhã de luz

Em que um antigo amor,
seguindo assobios e dúvidas,
procura na noite a luz da manhã.





        Paulo tinha, há muito, certeza: comemorações deveriam ser feitas por até, no máximo, cinco anos. Ou, para os mais heroicos, além de cinquenta... "No meio, não é purgatório, é inferno", dizia. Tanto é que esquecera a data. Mas Odete continuava registrando teimosamente a duração do fracasso. Agora, também esta noite, Mistura Fina, merecia ser esquecida.
           Sobreviventes, esperavam a mercedes. O manobreiro volta a pé. "A droga da chave rachada, finalmente quebrou", grunhiu Paulo.  Aceitou de má vontade as desculpas do gerente da casa. Pediu logo um táxi, a noite já estava velha demais para ele...
            Além de tudo não estava gostando nada do sorriso meio trânsfuga de Odete. "Será que tem a ver com o grisalho de voz rouca? Será que ela ainda tem desses frissons?" Olhou de lado, Odete entrava animada no táxi. A noite resistia em seus suspiros.  
            O motorista assobiava na madrugada vazia. Paulo sentiu um pequeno esgar no canto da boca. Claro, alguma coisa estava errada. Faltava a Odete aquele alheamento de sempre. Que deitasse a cabeça em seu ombro, então, Paulo realmente não esperava... Respirou mais forte o denso ar da Lagoa. Manteve a fleuma, à custa do ombro bem rígido, desconfortável.  
            O táxi subia no assobio as curvas do Alto Leblon. Paulo, encolhido no canto, cada vez mais sem jeito. Curva à direita, aliviava o incômodo. Curva à esquerda, mais perto Odete chegava de seu coração engessado.
            Chegou e subiu, rápido. Tirar a roupa e a náusea, trocar o sabor do passado por um falso frescor, achar o caminho da cama...   
Odete!... "Que é isso, meu Deus?", quase lhe escapa o grito, no susto. Odete, apenas calcinhas, à soleira da porta, mão no batente, braço ostentando o sutiã pela alça, olhos safados, boca borrada, seios arfantes, quadris no compasso do assobio do táxi... 
Odete, à noite
     Pouco tempo teve para ficar chocado. Não podia recuar. Avançou, mais curiosidade que desejo... Odete ondulou os braços à sua volta, sem se importar com seus olhos perplexos. Girou e o conduziu direto para a sempre monótona cama do casal. 
        Paulo a seguiu e até respondeu com afagos canhestros, numa espécie de reflexo, a seus toques já íntimos. Deitou, foi deitado, deitaram... No escuro, mantinha os olhos abertos. Sentiu reações pelo corpo. Odete não parava, com a mão ou com a língua, ativando os sentidos em superfícies um tanto esquecidas. "Não vai dar certo", pensou, estremecendo três vezes.  
Paulo, de manhã
       Odete mantinha o contato. Paulo perdia um pouco o controle, mas sua mente treinada buscava uma causa: "seria a bebida?"... Com a língua de Odete num ponto sensível, abandonou a questão.  Tentou recuperar o raciocínio. "Só se foi aquele assobio meloso...", supôs, retorcendo-se pela cama, suas mãos assumindo autonomia, descendo dos seios a outras paragens.
       Desistiu de explicar a si mesmo as mudanças de Odete. Colou mais seu corpo no dela, empunhando um pouco da força de outrora. Pensou em outra coisa, para ocupar a cabeça: "Até que o sujeito do bar, o de barba grisalha, não era de todo antipático..."
A luz da manhã
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O sol se levanta, invadindo o espaço das sombras. Mas, sempre paciente parceiro da vida, se esconde por trás das cortinas... 

Um comentário:

Guina Araújo Ramos disse...

Comentário da postagem original:
Belos textos, lindas fotos. Este é o senhor Guina. Fico a espera do terceiro. Cleusa Meurer