domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 1 - Uma noite passada


Em que se vislumbram, na névoa do bar,
possíveis conflitos e antigos amores, 
não necessariamente nessa hora...



"Recheio de bar é dor"...

Paulo sussurrou, balançando discretamente a cabeça: "o poeta tem razão!".

Pisou sem volta o derradeiro degrau e entrou no Mistura Fina. Quando a fumaça subiu dos olhos à mente, duvidou: "Devo ter inventado esse verso..."

Claro que Odete não ia perder a desculpa do aniversário de casamento para carregá-lo para algum lugar enjoado... Ele é que ficava enjoado nestas datas desnecessariamente repetidas. Perguntava à memória: "quando mesmo tinha acabado o casamento?"... E ela ainda comemorando o início, como se a intenção valesse para sempre: a ilusão em vez da realidade.

Paulo
Sentou, sorriu para ela. Bebeu um uísque, sorriu de novo. Embrulhada em sorrisos seria mais fácil engolir o amargo da noite.  Odete também não parecia bem, mas enganava melhor. Talvez tivesse fé. Para ele, era apenas teimosia.

Quando ela foi ao banheiro ("toalete", ele detestava essas enganações afetadas) Paulo olhou a escuridão. Conseguiu ver vozes no meio do burburinho. Alguns vultos passaram da névoa à vida. Um sujeito de barba falava alto, voz de barítono cansado. A loura chamava atenção, mas, o que lhe importava?...

As mulheres... Restava algum interesse por elas, embora lhe bastasse a conveniência de um caso, com uma funcionária ou outra na empresa. Não questionava mais o valor (ou o custo) daquelas conquistas. Apenas exercitava seu poder de fazê-las.

A voz do grisalho de barba ficara irritante. Se pudesse, preferiria prestar atenção ao sax. Odete voltava, tentando se por empinada. "Um pouco rodada, mas não está tão mal assim...", admitiu Paulo vendo Odete parar, meio que interrompendo o caminho, olhando firme para o lado. Ela pareceu estremecer, se não foi efeito do uísque. Abrupta, Odete quase se derruba a seu lado.

Paulo ouve o tilintar do gelo. O copo é frio, o suor também. "Esse ar está forte demais", critica em silêncio, acompanhando o olhar agitado de Odete, que encontra o mormaço do olhar do grisalho. Naturalmente Paulo segura sua mão. "Está meio estressada", garante, "preciso dar mais atenção à coitada".

Odete gira a cabeça em várias direções, mas não acompanha o vai-vem dos garçons. Seus olhos passam sempre pelo mesmo ponto. Paulo continua achando o ambiente muito chato... É a loura agitada que muda a cena, tentando agarrar-se a alguém. A voz do grisalho cresce contra ela. Odete continua inquieta. Paulo se incomoda ainda mais: "Essa loura é uma mala. E o cara também...".

Odete
O grisalho se vai, carregando a mala. Odete parece se aquietar. Algum tipo de alívio se junta à fumaça. Sente prazer em apenas olhar o salão. Quase se assusta com a risada firme de Odete: "Que foi?". "Nada", ela diz, olhando bem para ele. Paulo não percebe a graça. Nem gosta daquele falso jazz que tocam agora.

Aquele olhar... Em tempos antigos, quando talvez fosse um tanto romântico, quando algo realmente ainda os unia, poderia chamar de ternura. Se fosse, passara com o tempo.

Afogou o pensamento num gole. Pedindo outro uísque e prestando de novo atenção à sua volta, lembrou: "A noite é uma criança..."


Um comentário:

Guina Araújo Ramos disse...

Comentários da postagem original:
Belo texto, com gosto de quero mais. Achei as pulseiras da Odete bem sugestivas. Abç.
Oi, Guina, interessante a ideia da publicação do texto nesse formato. Acompanharei com interesse. Já comecei a curtir a leitura. Abraço. Wanderlino e Lena Jesus Ponte