domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 3 - Uma queda na tarde


Em que o mundo se abre
aos que por acaso se acham,
mas se fecha a quem os segue.



Paulo acordou vagamente e já era meio-dia. Cantarola a água do chuveiro, Odete também. Ele se retorce um pouco mais no prazer do sono. Na véspera, tensas nuvens se acumularam na paisagem cinza de seu casamento com Odete. Parecia que, mais uma vez, não viria a tempestade... Sempre assim, esse tempo todo: nem um desaforo, uma briga, um bater de porta sequer... Mas, desta vez, choveu alegria na fantasia da madrugada. Agora o sol brilhava. Enfim, um domingo gostoso!


Odete sai do banheiro ainda coberta de espumas, Vênus classe média démodé, mas inteira. "Dormiu bem, querido?", sorri, muito íntima. Aquele "querido" acorda Paulo de vez. Consciente, tenta voltar a dormir. Precisa de tempo, pressente que alguma coisa mudou. Enquanto resmunga, Odete dispara a falar que o dia está lindo, que mês de maio no Rio é o máximo, que não dá pra ficar em casa, que o coração lhe bate maior que o peito... "Vamos dar uma caminhada na praia?". Paulo percebe que foram longe demais. Virando de bruços se encolhe: "Hummm, acho que vou dormir mais um pouco...". Para Odete, tudo bem: "Vou dar uma rodada. Vou ver se encontro alguém conhecido". Paulo, quase dormindo, não deixa de levantar a sobrancelha...

Enquanto Paulo finalmente saía da cama, Odete iniciava seu desfile na praia. Após flutuar, leve e lenta, do Alto ao Baixo Leblon, agora caminhava suave, se espalhando na pista, se envolvendo com a fauna, acenando a vizinhos e conhecidos, bilubilando as criaturinhas do Baixo Bebê, notando as ondas dos surfistas ao longe, prestando atenção nos PMs troncudos, se dispondo aos olhares dos que tentavam controlar sua meio desnorteada alegria.
Paulo, na pista


Paulo resolveu andar na praia também, se conseguir achar aquele velho tênis surrado...  Já Odete, passando o Jardim de Alá e um pouco mais calma, deixou começar em sua mente um merecido balanço da noite passada: a comemoração forçada no Mistura Fina, o desinteresse evidente de Paulo, o prenúncio de mais um momento frustrante em sua vida frustrada. E como tudo mudou quando se decidira mudar, ao se ver no espelho, o corpo gasto, a alma rota.  Ali, no banheiro do bar, recuperara a presença, talvez a existência... Daí, viria o grisalho de barba, a troca de olhares, a fugida para casa, a decisão de não deixar que fosse mais uma noite morta em sua vida.  A reação de Paulo lhe dera a certeza, mas a lembrança do outro é que lhe dera o estímulo...  


Seguiu carregada pela nuvem de pensamentos até o Posto 9. Foi quando viu a figura, logo ali à frente: o grisalho de barba!... Terminava um papo qualquer. Deixou um abraço pelo meio e virou-se contente rumo ao Leblon, justo quando Odete chegava, sem ter podido refrear o andar (ou talvez o entusiasmo), e os dois se encontraram frente a frente, olhos nos olhos, quase mãos nas mãos... Pararam e ficaram. Tudo em volta seguia seu ritmo. Ficam parados por forças que não se anulam, se atraem. 

Odete, na prosa
Falaram sobre tudo ou nada. Os detalhes do encontro fortuito da véspera, o que cada um fazia na vida, um pouco da história de cada, o tempo, o dia, o mar... Muita coisa a dizer, um borbulhar de lembranças, anseios, conceitos, propostas, misturados nas mentes, fluindo sem pressa através dos olhares.  O tempo passando...


Em volta o ritmo seguia igual. Ninguém reparava no casal de meia idade, classe média Zona Sul, na pista da Vieira Souto, no correr da tarde de domingo. Mas, ao longe, a quase uma quadra, escondido pelos cocos do quiosque, encoberto pela turma da política, um pouco pálido apesar do sol ainda forte, um homem olhava, cabisbaixo, o casal. 


Paulo agora tinha certeza: alguma coisa ia mudar profundamente em sua vida.  E, mais ainda, na vida de Odete.



Um comentário:

Guina Araújo Ramos disse...

Comentário da postagem original:
Caro Guina. O ano começa hoje, ou não? Eu preciso ler o primeiro capítulo antes....e vou. Dei uma olhada e gostei, mas preciso (e quero) ter “olhos de ver“. Vida boa e longa a Odete! beijossssss Valéria Villela (por e-mail)
Adorooooooooooooooooooooo! beijin Samile. (por e-mail)
Nem eu! adorei o texto... legal ouvir/ler histórias sobre/de um pessoal que não tem 20/30 anos... tomei como um presente... da maior qualidade! Abração e, por favor, não pare! Ana Rowe (via e-mail)