domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 4 - A noite pesada

Em que o encontro do dia
antecipa o vazio da noite
e o primado das trevas.



O sol desce atrás do Dois Irmãos. Ainda assim, brilha na noite do Rio. Odete agora prescinde do sol, brilha por si.  

Alberto e Odete, no dia.
Volta para casa, o olhar fixo em nada, olhos iluminando o caminho. A fonte da luz é a lembrança de Alberto, o sorriso de Alberto, a voz de Alberto, o corpo de Alberto, a descoberta de Alberto... De um desconhecido grisalho de barba a um homem completo, um homem exato, um homem real. 

Apenas algumas horas de conversa com ele e Odete é uma nova mulher, uma mulher apaixonada. Lembrou do encontro na noite, a repentina certeza, o sentimento ocupando seu corpo, a paixão fulminante. A árvore e o raio. A valorização de sua imagem no espelho não fora casual. Era a percepção preliminar do encontro. A sedução de Paulo na madrugada reafirmou sua capacidade esquecida, o sexo reacendendo a chama da vida.

Paulo, à espera
Ao chegar em casa, Paulo está sentado, mais sombrio que a sala. Parece à espera. Usa o velho tênis surrado... Antes mesmo das perguntas a compreensão. Odete percebe que Paulo já sabe de tudo: "Você esteve lá, não é?"

Paulo parece vazio por fora. Não responde. Se sente dor, não grita, recolhe-se. Mas a tensão rasga o ar à sua volta. Aos poucos cresce um tremor das entranhas e o terremoto sai pela boca: "Sua puta! Eu vi você estatelada na frente do sujeito! Há quanto tempo vocês se conhecem? Que história é essa?"

Odete resiste à pressão: "Calma, vamos conversar..."

Explode o vulcão: "Que trepada foi aquela? Tava pensando nele, é?...". A lava transborda: "Quer me sacanear? Me fazer de palhaço?". E vai se resfriando: "Todo esse tempo juntos... Mereço mais respeito!". Uma dura e ressentida crosta se formava... 

Odete, líquida, tenta ficar fria: "Você não pode falar assim..." Mas subiu-lhe uma corrente profunda e quente: "Você, com suas putinhas da empresa, não tem moral para falar!". Subindo à superfície, a água ferve: "Trepei com ele na cabeça, sim. Só te usei, como você fez tantas vezes comigo."

Odete, vagando
Do encontro dos dois, névoa... Choque térmico, a frieza de um, a raiva do outro. Variações de temperatura e pressão. Rajadas de ventos, estranhas calmarias, inquietude. Entre eles, e entre eles e o mundo, um manto silencioso e espesso. É visível a impossibilidade de enxergar os caminhos, sequer os vislumbres. As certezas escapando das trilhas.

A conversa termina de forma banal. Vagos comentários sobre pessoas distantes, eventos antigos, tarefas caseiras... O silêncio assume seu posto. Na casa, circulam os fantasmas. Seus corpos pastosos ocupam os mesmos lugares de tantos momentos, o ambiente volta a ser a mesma natureza-morta há tanto exposta ao nada. A distância é de novo a medida de afeto entre eles.

Agora tudo isso é cenário... Ocupam a cena, nos palcos interiores de cada, romances e dramas.

O programa não inclui mais comédias.

Talvez entre em cartaz alguma tragédia...

Um comentário:

Guina Araújo Ramos disse...

Comentários da postagem original:
Prezado Guina Parabéns pelo magnífico “folhetim internáutico”. Novo gênero literário a enriquecer as mesmices da internet. (Teócrito Abritta)
Alô, Aguinaldo, li os 4 capítulos da Odete (que-nunca-foi-santa) de uma só tacada, e gostei demais! Só que de repente, querendo divulgar o folhetim, me deparei com o “blog removido”, como se o primado das trevas fizesse o caminho inverso daquele outro, famoso, assim saindo da história pra entrar na vida, sei lá... Apenas um problema técnico, espero. Será que Odete volta? HáBraços, Luiz.
Mais um bom livro da sua lavra, amigo? Parabéns!!! E l i s a R a m o s Fotógrafa / Jornalista