Em que inesperados
beijos
(e surpresas,
raivas e amores)
reativam os sentidos
do passado.
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Rio, frente fria |
Laura passou a noite a seu lado. Se Odete
falava bobagem ou chutava o ar, fazia-lhe carinho, dizia palavras no ouvido. De
manhã, sugeriu um banho morno, "para se descolar do passado".
Escoltou Odete ao chuveiro. Acabou indo junto, como nas aulas de educação
física dos tempos da escola.
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Laura |
Na despedida, Odete se emocionou, grata. Abraça profundamente a amiga, lágrimas na blusa, a cabeça em seu ombro. Palavras confusas, sentidas. Laura enxuga seu rosto, junta os cabelos úmidos, prende-os atrás do pescoço e a beija, carinhosamente, na boca. Odete estranha, surpresa... Mas, relaxada, aceita.
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Laura, no banho |
Apareceu na sala com sua melhor cara de
zangada. Encontra um Alberto sentido, olhar triste de cachorro de rua,
dissolvido em água de chuva, os olhos cinzentos de insônia, falando mil vezes
perdão. Ela pede que vá, ele diz que está indo. Ela precisa pensar, abraçam-se, sem mais palavras. Alberto vira, diz que
está certo. Acertados, se separa pra
sair, dá um passo, mas volta. Segura seus ombros bem firme e a beija,
ardentemente, na boca. Odete reclama, reage. Mas, remexida, aceita.
Por um longo tempo manteve-se fechada em
seu quarto, em silêncio. Paulo chegou na hora do almoço. Faz os barulhos de sempre,
a voz um pouco mais baixa. Ele fala com a empregada, conversa ao telefone, vê o
jornal na TV. Ela circula no quarto. Não sabe o que pensa, arruma mil vezes os
enfeites da cômoda.
Ele bate na porta, ela pergunta o que é.
Ele anuncia que vai viajar. Ela abre a porta, não olha para nada...
Constrangido, ele diz que está indo a São Paulo, só volta amanhã, assunto da
empresa. Ela balança a cabeça que sim, que entende. Ele se confunde em palavras
e gestos que formam uma espécie apressada de abraço, e, sem jeito, a beija,
timidamente, na boca. Odete resmunga, o velho costume... Mas, resignada,
aceita.
A chuva passara. Burlando a censura das
nuvens, raios de sol caem no chão, colorindo fatias do mundo. Lembranças
alegres faziam o mesmo na cabeça de Odete. Mas o chumbo das nuvens do céu e o
cinza das dúvidas predominavam. Pelo menos, não chovia mais. Almoçou sozinha.
Melhor ficar sozinha para sempre, muitos diriam... Vestiu uma roupa de andar.
Usou um batom bem discreto. Saiu, sem saber para onde. Queria rever as pessoas,
as ruas, a cidade, sempre maravilhosa mesmo nublada.
Desceu para a Lagoa cruzando o canal,
passou por supermercados e escolas. Vendo meninas de uniforme, diminuiu o
passo. Bandos delas, nos bancos da praça. As saias plissadas e curtas, as
blusas entreabertas, um riso incontrolável, uma conversa sem fim. Pequenas
Odetes... Lembrou de Laura. Sentiu o rosto tingido de rosa, carmim. Assim se
sentia, na idade delas, quando, sem aviso e sem vergonha, os bicos dos seios
espetavam, tentavam furar o vestido. Cruzava os braços, vestia o casaco,
abraçava a prancheta, nada... Mantinham-se duros, acesos. Faróis iluminando o
desejo. O rosto, em brasa. E a angustiante vontade de se esconder.
Na adolescência, a privacidade lhe fugia ao
domínio. Viviam expondo ao mundo seus maiores mistérios. Mesmo fingindo não ver
o olhar despudorado do garoto, uma onda lhe subia das pernas, entrava pelo
ventre, dava-lhe aquele desassossego, o riso frouxo, a tendência a estrelar
comédia pastelão... Ou um drama, como na volta do passeio ao MAM, quando o colega,
ingênuo, perguntou se se machucara, a mancha vermelha na saia. Perdeu o controle.
Esvaziou-se em lágrimas no fundo do ônibus. Não pela condição feminina, a
menstruação. Mas por falhar em mantê-la secreta.
Desviou para a praia. Nuvens fortes, o sol
dava rajadas de luz sobre as ondas. Os surfistas brilhavam sob holofotes saídos
do céu. Parou para vê-los. Rapazes bonitos, os músculos torneados, os cabelos
queimados de cera, as pernas sensuais sobre as ondas. As sungas, mínimas...
Lembrou de Alberto. Sentiu a onda excitando seu corpo. Ainda sentia o mesmo
efeito dos primeiros namoros no Cine Pax, nas muretas do Jardim de Alah, nos
vãos das pedras do Arpoador. A descoberta do corpo dos homens, a firmeza do
desejo, a aspereza do gesto, o descompasso do ritmo. A dificuldade do encontro
romântico. Viu que os homens tendiam à precipitação, à falta de jeito ou à
calhordice, não necessariamente nessa ordem. E à dissolução de seus sonhos. A
jato...
Na juventude, tinha grande capacidade de
ser inábil. Falava a coisa errada na hora errada ou, sendo certa a hora,
deixava de falar... Não lhe davam tempo de definir os anseios. Nervosa, na
expectativa da primeira relação sexual, começou uma longa fala sobre tão
importante momento, as melhores preliminares, a atitude respeitosa que esperava
dele, o que ele devia falar... Resultou numa discussão exasperante, ânimos
exaltados e na tentativa do quase futuro noivo de currá-la, como se dizia na
época...
Entrou pelas ruas do Leblon, olhou os
hotéis, circulou por shoppings e cinemas. Já se viam trechos de azul sobre os
prédios. Cruzou com casais de mãos dadas, abraçados na fila, sentados nas mesas
dos bares. Reparou na fluência das conversas, nos gestos carinhosos. Lembrou de
Paulo. Sentiu a ternura enchendo suas mãos. A mesma que sentira no início do
namoro, na viagem de lua-de-mel, nos primeiros anos de casada. Via nele o
cavalheiro, o homem gentil com que um dia sonhara, o que sabia o tempo e o
clima necessários ao amor. Depois ficou claro que havia muito mais de timidez,
imaturidade, dificuldade de expressar a masculinidade. Mas, o início, este
ficou como um parâmetro ideal, quase atingido...
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Odete, revistas |
Tinha que entender a situação. Precisava de
todos os sentidos. Até do sexto, se tivesse... E se funcionasse.
Volta para casa no fim da tarde. O sol
desce na Gávea, seus raios vencendo as nuvens, cruzando o céu da Lagoa. A
explosão das cores: amarelo, laranja, lilás, grená... Cores da revolução.
Prenúncio de tempo bom.
À noite, convive com o silêncio da casa.
Não liga a TV. Procura nas gavetas as caixas de lembranças, as cartas, os
diários, os poemas, as flores secas, as fotos. Olha cada um dos guardados com
toda atenção, contando as histórias de novo a si mesma. Espalha a memória na
cama, arrumando cuidadosamente o passado à sua volta. Dorme profundamente no
centro da própria vida.
Um comentário:
Guina, não havia lido qualquer dos capítulos do folhetim. Li o último e fiquei muito bem impressionado. O autor leva jeito. As frases breves. As hesitações de nossas companheiras. Seus desejos sempre insatisfeitos. Enfim a competente descrição de como a(s) mulher(es) se comportam. Lerei mais. É uma boa leitura. Este material deixará a virtualidde e virá a lume em papel? (Paulo Vendrami)
Aguinaldo querido, tudo bem? to em falta contigo porque estava acompanhando Odete. e gostando muito mas me perdi porque (...) minha vida ta embolada. quando acabar vc me manda completo? bjs., obrigada. (via e-mail) (Diana Aragão)
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