domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 9 - Uma sexta sentida



Em que inesperados beijos
(e surpresas, raivas e amores)
reativam os sentidos do passado.

Rio, frente fria
        O tempo virou, frente fria sobre o Rio. A lua escondeu-se atrás da Pedra da Gávea. O Cristo se cobriu de nuvens. Odete acordou da cor da manhã, cinzenta, tal qual o vestido prateado... Chovia em seus olhos.
Laura passou a noite a seu lado. Se Odete falava bobagem ou chutava o ar, fazia-lhe carinho, dizia palavras no ouvido. De manhã, sugeriu um banho morno, "para se descolar do passado". Escoltou Odete ao chuveiro. Acabou indo junto, como nas aulas de educação física dos tempos da escola. 
 
Laura
Enxaguou seus cabelos, enxugou suas costas. Antes que se vestisse de todo, levou-a de novo à cama e lhe aplicou uma sequência de massagens, garantindo que tudo, afinal, daria certo.

Na despedida, Odete se emocionou, grata. Abraça profundamente a amiga, lágrimas na blusa, a cabeça em seu ombro. Palavras confusas, sentidas. Laura enxuga seu rosto, junta os cabelos úmidos, prende-os atrás do pescoço e a beija, carinhosamente, na boca. Odete estranha, surpresa... Mas, relaxada, aceita.

Laura, no banho
Chovia. Chegou molhada em casa. Trocou de roupa, queria melhorar a imagem, sentir-se de novo em si mesma. Comeu algo leve. A empregada avisa, um senhor grisalho queria lhe falar. Odete, recuperada, faz Alberto esperar um tempo, enquanto prepara um discurso firme, definitivo.  
Apareceu na sala com sua melhor cara de zangada. Encontra um Alberto sentido, olhar triste de cachorro de rua, dissolvido em água de chuva, os olhos cinzentos de insônia, falando mil vezes perdão. Ela pede que vá, ele diz que está indo. Ela precisa pensar, abraçam-se, sem mais palavras. Alberto vira, diz que está certo. Acertados, se separa pra sair, dá um passo, mas volta. Segura seus ombros bem firme e a beija, ardentemente, na boca. Odete reclama, reage. Mas, remexida, aceita.
Por um longo tempo manteve-se fechada em seu quarto, em silêncio. Paulo chegou na hora do almoço. Faz os barulhos de sempre, a voz um pouco mais baixa. Ele fala com a empregada, conversa ao telefone, vê o jornal na TV. Ela circula no quarto. Não sabe o que pensa, arruma mil vezes os enfeites da cômoda. 
Ele bate na porta, ela pergunta o que é. Ele anuncia que vai viajar. Ela abre a porta, não olha para nada... Constrangido, ele diz que está indo a São Paulo, só volta amanhã, assunto da empresa. Ela balança a cabeça que sim, que entende. Ele se confunde em palavras e gestos que formam uma espécie apressada de abraço, e, sem jeito, a beija, timidamente, na boca. Odete resmunga, o velho costume... Mas, resignada, aceita.
A chuva passara. Burlando a censura das nuvens, raios de sol caem no chão, colorindo fatias do mundo. Lembranças alegres faziam o mesmo na cabeça de Odete. Mas o chumbo das nuvens do céu e o cinza das dúvidas predominavam. Pelo menos, não chovia mais. Almoçou sozinha. Melhor ficar sozinha para sempre, muitos diriam... Vestiu uma roupa de andar. Usou um batom bem discreto. Saiu, sem saber para onde. Queria rever as pessoas, as ruas, a cidade, sempre maravilhosa mesmo nublada. 
Desceu para a Lagoa cruzando o canal, passou por supermercados e escolas. Vendo meninas de uniforme, diminuiu o passo. Bandos delas, nos bancos da praça. As saias plissadas e curtas, as blusas entreabertas, um riso incontrolável, uma conversa sem fim. Pequenas Odetes... Lembrou de Laura. Sentiu o rosto tingido de rosa, carmim. Assim se sentia, na idade delas, quando, sem aviso e sem vergonha, os bicos dos seios espetavam, tentavam furar o vestido. Cruzava os braços, vestia o casaco, abraçava a prancheta, nada... Mantinham-se duros, acesos. Faróis iluminando o desejo. O rosto, em brasa. E a angustiante vontade de se esconder.
Na adolescência, a privacidade lhe fugia ao domínio. Viviam expondo ao mundo seus maiores mistérios. Mesmo fingindo não ver o olhar despudorado do garoto, uma onda lhe subia das pernas, entrava pelo ventre, dava-lhe aquele desassossego, o riso frouxo, a tendência a estrelar comédia pastelão... Ou um drama, como na volta do passeio ao MAM, quando o colega, ingênuo, perguntou se se machucara, a mancha vermelha na saia. Perdeu o controle. Esvaziou-se em lágrimas no fundo do ônibus. Não pela condição feminina, a menstruação. Mas por falhar em mantê-la secreta.
Desviou para a praia. Nuvens fortes, o sol dava rajadas de luz sobre as ondas. Os surfistas brilhavam sob holofotes saídos do céu. Parou para vê-los. Rapazes bonitos, os músculos torneados, os cabelos queimados de cera, as pernas sensuais sobre as ondas. As sungas, mínimas... Lembrou de Alberto. Sentiu a onda excitando seu corpo. Ainda sentia o mesmo efeito dos primeiros namoros no Cine Pax, nas muretas do Jardim de Alah, nos vãos das pedras do Arpoador. A descoberta do corpo dos homens, a firmeza do desejo, a aspereza do gesto, o descompasso do ritmo. A dificuldade do encontro romântico. Viu que os homens tendiam à precipitação, à falta de jeito ou à calhordice, não necessariamente nessa ordem. E à dissolução de seus sonhos. A jato...
Na juventude, tinha grande capacidade de ser inábil. Falava a coisa errada na hora errada ou, sendo certa a hora, deixava de falar... Não lhe davam tempo de definir os anseios. Nervosa, na expectativa da primeira relação sexual, começou uma longa fala sobre tão importante momento, as melhores preliminares, a atitude respeitosa que esperava dele, o que ele devia falar... Resultou numa discussão exasperante, ânimos exaltados e na tentativa do quase futuro noivo de currá-la, como se dizia na época...
Entrou pelas ruas do Leblon, olhou os hotéis, circulou por shoppings e cinemas. Já se viam trechos de azul sobre os prédios. Cruzou com casais de mãos dadas, abraçados na fila, sentados nas mesas dos bares. Reparou na fluência das conversas, nos gestos carinhosos. Lembrou de Paulo. Sentiu a ternura enchendo suas mãos. A mesma que sentira no início do namoro, na viagem de lua-de-mel, nos primeiros anos de casada. Via nele o cavalheiro, o homem gentil com que um dia sonhara, o que sabia o tempo e o clima necessários ao amor. Depois ficou claro que havia muito mais de timidez, imaturidade, dificuldade de expressar a masculinidade. Mas, o início, este ficou como um parâmetro ideal, quase atingido...  
Odete, revistas
Na maturidade, a condescendência tornou-se um refúgio.  Passou a aceitar qualquer solução, exceto a sua. O não ter vontade assumiu ares de filosofia de vida. Foi assim que manteve duradouro o casamento. Deixou para o marido as decisões importantes. Para ela restaram coisas da casa, o grupo de amigas sem causa, as notícias do mundo dos ricos, as fofocas do mundo das artes. Colecionava revistas de moda e decoração. Buscava lampejos de vida na vida alheia. E agora tudo mudava... Como decidir o que fazer? 
Tinha que entender a situação. Precisava de todos os sentidos. Até do sexto, se tivesse... E se funcionasse.
Volta para casa no fim da tarde. O sol desce na Gávea, seus raios vencendo as nuvens, cruzando o céu da Lagoa. A explosão das cores: amarelo, laranja, lilás, grená... Cores da revolução. Prenúncio de tempo bom. 
À noite, convive com o silêncio da casa. Não liga a TV. Procura nas gavetas as caixas de lembranças, as cartas, os diários, os poemas, as flores secas, as fotos. Olha cada um dos guardados com toda atenção, contando as histórias de novo a si mesma. Espalha a memória na cama, arrumando cuidadosamente o passado à sua volta. Dorme profundamente no centro da própria vida. 

Um comentário:

Guina Araújo Ramos disse...

Guina, não havia lido qualquer dos capítulos do folhetim. Li o último e fiquei muito bem impressionado. O autor leva jeito. As frases breves. As hesitações de nossas companheiras. Seus desejos sempre insatisfeitos. Enfim a competente descrição de como a(s) mulher(es) se comportam. Lerei mais. É uma boa leitura. Este material deixará a virtualidde e virá a lume em papel? (Paulo Vendrami)
Aguinaldo querido, tudo bem? to em falta contigo porque estava acompanhando Odete. e gostando muito mas me perdi porque (...) minha vida ta embolada. quando acabar vc me manda completo? bjs., obrigada. (via e-mail) (Diana Aragão)