domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 10 - Sábado, sempre!


"Há um renovar-se de esperanças, porque hoje é sábado." 
 (Vinicius de Moraes, in "O Dia da Criação")

Todo dia, ah, quem dera todo dia fosse sábado!
 Sábado é o dia exato. Nem o peso excessivo da semana, nem o relaxamento demasiado do domingo. O momento ideal de ser feliz provavelmente cairia num sábado... Que bom se o calendário fosse uma interminável sucessão de sábados!
O sábado é a melhor síntese feita pelo bicho humano no correr desses milênios entre o esforço de transcender o animal e o sentimento de ser sempre um ser que sente. Evoluindo, crescendo, um dia ele acorda sábio e percebe que na verdade a vida é um sábado infinito.
Sendo sábado toda solução é possível. Odete soube disso ao se espreguiçar de manhã, cercada de lembranças antigas e recentes, bossa nova tocando no rádio de cabeceira versos de suas músicas preferidas. Sim, o espírito do dia lhe daria o tom...


"Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar..."

Odete e Paulo concordaram que seria melhor viverem separados. Ela aceitou as ponderações dos amigos. A grande maioria achava que devia ficar sozinha, depois de passar por toda aquela situação desagradável, o mal-estar gerado pela proposta de Alberto. Precisava de autonomia, tinha uma nova postura existencial e ética a defender. Vendeu as ações da Petrobras, presente do sogro no dia do casamento, e aplicou o dinheiro. Tinha sua própria fonte de renda. Não seria razoável manter-se sob o mesmo teto que Paulo... 
Assim sendo, levantaram uma parede, fecharam umas portas, ampliaram o antigo quarto de hóspedes, acrescentaram uma cozinha, trocaram o portão lateral de saída e mais sinteco, pintura...  Pronto: Odete passou a ter a sua própria casa!  
Por outro lado, certos acontecimentos exigiam a presença dos dois, até para não decepcionar os velhos amigos. Assim, continuaram a frequentar festas de casamento no Copa, posses de presidentes do Jóquei, jantares oficiais no Palácio Laranjeiras. 
 
 Odete e Paulo, vinhos
Num sábado, foram a uma festa de aniversário do cachorrinho de uma socialite, emergente badalada da Barra, um que por pouco não virou escândalo nos jornais. Voltaram às gargalhadas no táxi. O motorista assobiava o tempo todo e isso também era muito engraçado... Subiram juntos para o lado "Paulo" da casa, o que pareceu a Odete muito natural. Ele abriu uma garrafa de vinho, enquanto lembravam o quase strip-tease da socialite e do amante surfista. Ela lembrou a surpresa que lhe fizera, só de calcinhas na porta do quarto. Ele duvidou que fizesse de novo. Ela fez. Amaram-se na velha cama comum, matando saudades. 
E assim foi. Às vezes, voltando de uma formatura na PUC, iam para a casa dela, rever velhos vídeos. Outras, depois de um balé beneficente, subiam para a dele. Paulo fazia mesuras e rapapés, Odete imitava as bailarinas. Entravam na dança. Só não faziam mais o pas-de-deux...


"Ela é carioca, olha o jeitinho dela andar.
E ninguém tem carinho assim para dar."

Odete e Laura retomaram a velha amizade. Elas, que tinham sido unha e carne na adolescência, voltaram à maior cumplicidade. Laura deu um banho de loja em Odete, numa linha mais leve, colorida, estilo M. Officer. Esta retribuiu, levando a amiga aos melhores salões da Zona Sul, do New Maritê ao Jambert, para lhe tirar um certo mofo psicodélico, ainda dos 70. Conseguiu até uma vaguinha na agenda do Pitanguy, mas Laura preferiu mudar de ideia do que mudar de nariz... Chegaram a ir a um spa na serra, mas a comida e os instrutores deixaram muito a desejar.
 
Odete e Laura, cômoda
Passaram um sábado inteiro decorando a nova casa de Odete. Tinham comprado juntas uma cômoda no Rio Design e um sofazinho no Shopping da Gávea. Depois de escolherem lugares quase definitivos para as duas peças, passaram a reposicionar os objetos das estantes, a arrumar as roupas no armário, a experimentar as novas peças de lingerie de Odete. Laura vestiu seu segredo, que levava sempre na bolsa "para qualquer eventualidade", um conjunto vermelho de rendas pretas e aberturas estratégicas. Odete, excitada, quis provar. Laura desafiou, rindo, que ela viesse tirar... Quando conseguiu, Odete também estava nua. Puderam se conhecer mais intimamente, experimentar as possibilidades, entregar-se aos prazeres possíveis.
E assim foi. Cada vez que uma comprava uma novidade, fosse para a casa, fosse para o corpo, a outra logo vinha conhecer. Experimentavam também exercícios e técnicas que aumentavam o prazer do contato. Laura abria para Odete uma nova percepção. Odete entregava a Laura uma nova vibração. As duas, juntas, numa teia de emoções...


"...que no peito de um desafinado também bate um coração."

Laura e Alberto tinham a mesma ideologia. Ela, numa das vindas ao Brasil, no início da década de 80, ajudara a fundar o núcleo do PT na Gávea. Ele participara das campanhas do Lula a presidente, desde a primeira, em 89. Decididamente, não engrossavam o coro dos contentes. Logo que se conheceram iniciaram uma acalorada discussão sobre a necessidade de estimular a autocrítica dentro do partido, desde os militantes de base até os membros do Diretório Nacional. Não eram afinados com nenhuma tendência, mas acreditavam na organização. Passaram a ir juntos às festas dos candidatos e às reuniões de avaliação.
 
Laura e Alberto, música
Num sábado, voltando de uma festa do Bittar no Lagoinha, foram para a casa dela, para melhor esclarecer certas posições internas. Lá, descobriram outra paixão em comum: jazz and blues.  Ouviram de Oscar Peterson a Winton Marsalis. Ela dublou Billie Holiday no tapete da sala para a miniplateia deliciada do sofá. Dançaram agarradinhos What a Wonderful World, a voz rouca de Louis Armstrong sussurrando no ouvido I love you. Deixaram uma pilha de CDs programados no som e fizeram sax, ou melhor, sexo, ao som de trompete, clarinete e bateria.
E assim foi. Por muitas campanhas políticas, majoritárias ou proporcionais, e tantos outros shows no Jazzmania ou no People, havia sempre uma avaliação programática e/ou um showzinho particular depois, na casa de um deles. Laura descobrindo os instrumentos de Alberto. Ele apreciando o perfil carismático dela.


"São demais os perigos desta vida, pra quem tem paixão..."

Alberto e Paulo dividiam ao menos uma paixão: o Botafogo.  Apesar de ser o clube da estrela solitária, passaram a ir juntos ao Maracanã, até cruzavam a cidade para torcer no Engenhão. Sofriam com as derrotas, mas nas vitórias tratavam de comemorar!...
Num sábado, jogo à tarde no Maracanã, vitória de 3 x 0 sobre o Vasco, voltaram para o apartamento de Alberto. Reviram o jogo na TV a cabo, só para curtir os detalhes. Brindaram com cerveja e doses de uísque. Relembraram os melhores momentos mil vezes, gritando a cada gol como se fosse ao vivo, uma goleada infindável, pulando como criança, xingando o juiz, cantando musiquinhas obscenas, se abraçando. 
 
Paulo e Alberto, paixão
Quando alguém da vizinhança reclamou, mostraram as bundas na janela e riram muito. Dormiram abraçados, seminus, felizes com o resultado. Se um gritava gol, o outro fazia coro. Nada de exclusividade entre eles que, como se sabe, gol de bêbado não tem dono...
E assim foi. Além do Botafogo, viam os jogos da seleção em parceria. Paulo levava o uísque, Alberto providenciava as comidinhas. Se a vitória convencia, ficavam eufóricos, se abraçavam. Se o jogo estava ruim, debochavam de tudo. Encarnavam um no outro, recordavam as sacanagens de crianças, o tempo gasto com as revistas no banheiro, o troca-troca de figurinhas, os concursos de volume e tamanho. Dormiam tarde, ficavam cada vez mais tempo brincando dessas coisas. E cada um com as coisas do outro...
 

"Não quero mais esse negócio de você viver sem mim."

Paulo e Laura, estudos
Paulo e Laura tinham negócios a tratar. De início, por indicação de Odete, ele deu um pulo na casa dela, num sábado à tarde, para dar umas sugestões de como investir na Bolsa as libras que lhe restavam. Ela, em troca, versada em astrologia empresarial, fez o mapa da empresa, analisou os trânsitos, indicou o tipo de cliente mais favorável ao negócio dele. Como este assunto deixava-o muito tenso, fez um pouco de shiatsu, seguindo pelos seus braços e pernas os meridianos da acupuntura. Aplicou-lhe até um moxabustão nas costas. Ele falou da dificuldade de relaxar, ela, então, ampliou o contato. Se amaram no tatame, entre signos e ações. 
E assim foi. Havia sempre um motivo sério, uma dúvida comercial ou financeira que justificava um encontro relaxante ao som do Homem de Bem. Quando ele, que já tinha despedido a secretária, vinha consultar o tarô, ela tirava o poster do Che da parede. Ele trazia incensos, encomendados de um site da Califórnia, ela experimentava nele novos aromas dos seus óleos de massagem. Ela, levantando a autoestima dele. Ele, capitalizando os melhores recursos dela.


"Ah, minha amada, me perdoa a tristeza que causei..."

Odete e Alberto se afastaram por um tempo. Odete, sem conseguir escapar da mágoa, da sensação de conluio, da doída quebra de confiança. Alberto, quase afogado em culpas, sofrendo pela falta de tato, por tropeçar na própria ansiedade.
Afinal, Alberto ligou para Odete, antes que fosse tarde demais. A empregada informou que ela tinha viajado com Laura, "pra emagrecer num sítio". Ele deixou recado. Ela ficou na dela. Quando ligou, ele estava de saída para ver um jogo com Paulo. Ela o deixou por conta da secretária eletrônica por uns dias, para ele aprender... Quando esqueceu e atendeu, era dia da festa de casamento de um empresário, importante cliente de Paulo, ela tinha que ir. Foi a vez dela tentar, mas Alberto combinara com Laura de ir a uma reunião importantíssima do comitê de campanha do Vladimir Palmeira. Em suma, um período cheio de desencontros. Embora a vida seja, eles sabiam, a arte do encontro...
 
Odete e Alberto, comidas
Num sábado bem cedo, Odete, caminhava acelerada pelo calçadão da Vieira Souto. Alberto, tomando água de coco num quiosque, esperou sua aproximação. Ela não desviou. Ficaram frente a frente. Retomaram a conversa do ponto em que deixaram, na última vez que estiveram a sós. Não tinham tomado café. Foram ao apartamento de Alberto. Experimentaram geleias e frutas, repassaram patês e manteigas, saborearam baguetes e croissants. Voltaram a se amar como antes, sem regimes ou rejeições...
E assim foi. E foi muito melhor. Odete não falou mais em mudanças na bagunçada casa de Alberto, muito menos em se mudar para lá... Alberto, amadurecido, prestava cada vez mais atenção aos desejos de Odete. Os dias se misturando às noites, os dias se animando como se fossem sábados, o tempo se esquecendo de passar...
  
"Que não seja imortal, posto que é chama,
mas que seja infinito enquanto dure."

E assim foi. Em vez de um triângulo, um quadrado. Mas um quadrado arredondado, maleável, flexível... 
Melhor dizendo, um quarteto. Cada um na sua, nada fechado. Um quarteto fora de si. Às vezes, fora do mundo... 
Assim, todos ficaram sozinhos. Só que "sozinho" passaria, então, a categoria coletiva...
       Todos juntos na mesma solidão.

Um comentário:

Guina Araújo Ramos disse...

Comentários da postagem original:
Poxa, GUINA, não acaba a história não. Eu curto todos os sábados a Odete. Quem sabe ela não vai morar em Fortaleza e a história continua lá? Beijinhos (Bárbara França)
Guina, como sempre muito bonito o texto. Gosto da descrição dos detalhes e imagens cheios de poesia, e da delicadeza e sensibilidade na abordagem dos labirintos da emoção humana. As fotos também são ótimas e muito condizentes com o clima do texto. Fico aqui imaginando umas três ou quatro possibilidades para o final da história! Solta logo o último capítulo! Obs: Vou deixar pra comprar o “Rio de Amores” só depois de ler o último capítulo que é pra não cortar a onda! Beijos (Perla Nanchery)
A véspera é excitante, porque ela precede. Porque é o que sabemos, e o que não sabemos. É o que esperamos. Almejamos, queremos, mas que ainda não temos. Exatamente por isso é muito, muito excitante. ESSA É A MAGIA DO SÁBADO... Bj gd amigo querido. (Joana)