domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 8 - Na quinta, a essência

Em que a paixão dá lugar
a uma surpreendente proposta,
que, criando mágoas, traz um bem.
      


                 Na quinta-feira, Odete acordou ansiosa por Alberto. Saiu de casa antes das dez. No caminho, ainda sem intimidade, foi ficando meio sem graça: leite morno... Quando chegou, foi bem recebida, com tesão: café quente... Aos beijos, bules e xícaras se misturaram, se fundiram: café com leite. 

Alberto, reforço
        Amaram-se por entre as geleias. Creme espalhado no corpo, alma exposta em fatias, manteiga derretida na emoção do momento, Odete se servindo de fartas doses de felicidade. Para Alberto, pura vitamina!... Nova fonte de energia, sucrilhos de alegria no mingau do seu dia-a-dia. Todos os sabores numa só, nada de salada de frutas... Para ambos, o gosto de espremer de novo o suco da vida. 
      Brindaram ao desjejum amoroso. Gole a gole, o fim da dieta forçada. Agora, era só manter a linha... Mesmo assim, gulosos, repetiram a dose. 
       Mas não o dia todo. Alberto tinha compromissos. E, também, uma missão: "Fique o tempo que quiser... Vamos nos ver à noite?... Eu ligo. Ah, convidei uma pessoa para conversar conosco. Temos uns assuntos a tratar. E esta pessoa tem a ver..."
        Não deu mais explicações. Odete percebeu a sua impaciência, a pressa de sair, como se a repartição dependesse dele para funcionar. Esquivou-se. Na porta, cabisbaixo, disse apenas: "Confie em mim. É necessário".
        Odete ficou à vontade pela casa. Escolheu um B. B. King, entre muito blues e jazz, e recostou-se no sofá. Lembrou do primeiro encontro. Uma loucura, o sexo, o vinho... Riu, mas a lembrança a deixou nervosa. Falara demais. Uma mulher normal, qualquer uma, não proporia viver junto no primeiro encontro!... Podia pensar, sim, mas, dizer...  Só estando bêbada, carente ou estupidamente feliz. 
        Já que fora exatamente assim que se sentira naquele dia, deu de ombros. "O amor não tem prazos nem culpas", lembrou dos cadernos de poesias da adolescência. Mas sentiu que Alberto sentiu. Agora queria um estranho encontro com alguém, talvez para ajudá-lo a definir a situação... Via-se nele, e pelo próprio apartamento, um lado inseguro e ingênuo. Bem canceriano... Dificuldade de dividir a intimidade. Falar em vir morar com ele, então, foi demais...
        Sentia-se bem ali, imersa na relação e na vida de Alberto. Mas preferiria tê-lo em seu próprio ambiente. Se pudesse levá-lo para casa... Tinha que reconhecer, não gostava de mudanças. Taurina, signo fixo, teimoso, ainda mais com ascendente virgem, meticuloso, acomodado, seu ideal era trazer para o cotidiano as novidades e fazer logo da novidade uma parte do cotidiano. Estava consciente disso, não tinha feito o mapa astral à toa... E não por acaso ficara todos estes anos com Paulo...
        Alberto, mal chegou ao trabalho, ligou para Paulo: "Falei com ela. Vamos conversar ainda hoje?".
        Paulo detestara a proposta. Pior era a possibilidade de perder Odete de uma vez por todas, desorganizar toda sua retaguarda caseira, ver seu casamento ir à falência. E que os outros vissem isso. Propôs o Mostarda, na varanda, bem no início da noite, antes da chegada dos turistas: "Vamos lá. Vamos tentar logo um acordo..."
        Quando chegou, Alberto parecia agitado. Discutia com o garçom, queria trocar de mesa. Deixou Paulo um pouco nervoso. Esperava que ele administrasse a situação. Afinal, foi ideia dele.  Tomaram uns uísques. Do outro lado das pistas, a calma da Lagoa. "Será que ela vem?", perguntavam, cada um para si, enquanto falavam de futebol.
        Quando a lua, lâmina, saiu das nuvens, encontrou o Cristo de braços abertos. No rastro da lua na Lagoa, Odete saltou do táxi. De vestido prata. Quase tão linda quanto a lua, mas muito mais jovem. Se ficou surpresa, sumiu na palidez da maquiagem... Os dois lhe deram as mãos ao sentar. Firmou-se numa postura altiva, mas acabou traindo o nervosismo: "Afinal, que ideia maluca é essa?...".
        Ouviu, mantendo a pose, os planos de Alberto. Que ela continuasse morando na casa de Paulo, conservando seu status, suas amizades, os confortos de tantos anos. Mas, com a certeza deste novo amor, da sua disposição de fazê-la feliz, embora lamentando a impossibilidade de sustentar uma vida em comum. E ouviu as ponderações de Paulo, que a respeitava pelo passado, sempre companheira, que não deixava de valorizar a história vivida em comum, que reconhecia, como cavalheiro, seu direito de amar Alberto. E que se disporia a sustentar o relacionamento formal, com suas vantagens no convívio com a sociedade, evitando, assim, mudanças no estado civil e mais, ele esperava, no estado de espírito. Mantendo-se neste alto nível, a relação atingiria sua quintessência, a sua forma ideal. 
 
Odete, saindo
        Fria e distante, a lua. E Odete, que olhando de um para outro, levantou de repente: "Já ouvi o essencial. Preciso de um pouco de ar.". Andou até o meio-fio, de costas para os dois. O Cristo continuava de braços abertos no Corcovado, a fool on the hill. A lua há muito passara por ele, displicente. Brilhava, sozinha, à frente de Odete, completamente sem dono. 
Um táxi trouxe um casal e se foi com Odete, no rastro da lua. Os dois, de braços abertos, ficaram para trás...
Foi até a praia de Ipanema. Sentiu no coração o gosto do mar, lágrimas na água de coco. Por muito tempo ficou ali, o coco na mão, o gosto de sal, os olhos no mar. Até que o destino tocou a buzina. No carro, parado na pista, uma mulher sorridente, sua velha amiga aventureira, a que rodara o mundo, a recém-ressurgida Laura.
 
Odete, lágrimas
Odete ficara em casa, enquanto Laura vivia sua chance em Londres. Há pouco a encontrara, na noite. Mudara muito. Uma nova pessoa, diferente, ousada, decidida. A ponto de, cansada dos homens, substituí-los por outra mulher. "Um investimento em qualidade", dissera. Para a conservadora Odete, homem ainda era o melhor... E tinha um da melhor qualidade. Ou dois. Ou não...
Contou-lhe tudo, como se vomitasse não a água de coco, mas as lágrimas e as dúvidas. Laura, prática, absorveu o desabafo, ofereceu todo seu apoio: "Calma. Vamos lá pra casa. Você dorme lá esta noite. Amanhã, descansada, relax, você decide."
Odete não tinha certeza de nada. Nem forças para recusar o convite. Quando Laura pegou sua mão, lançou sobre ela um olhar úmido, que brilhou no seu rosto sem cor, na maquiagem borrada. Uma espécie de apelo. E deixou-se levar.

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