Em
que a normalidade
mostra ser apenas fachada
mostra ser apenas fachada
e
o diferente se mostra normal.
Uma
quarta-feira aparentemente normal.
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Odete, recursos. |
Quem observasse Paulo e
Odete diria que o casal vivia uma fase normal. Paulo foi normalmente para o
trabalho naquela manhã. Odete ficou em casa, dando umas ordens normais à
empregada. À tarde, se encontraram de passagem, trocaram umas palavras. Paulo
veio pegar uns documentos. Odete saía para o dentista. De noite, cada um no seu
canto. Ela vendo a novela e alguns filmes na TV. Ele acessando a Internet, checando
cotações das ações e novas oportunidades para a empresa. Na hora de dormir, um
desencontro normal. Ele deitou mais cedo, ela ficou vendo o Jô. Quando ele foi
ao banheiro, ela roncava baixinho. Quando ele saiu, ela ainda dormia.
Normal. Tudo normal. Não
fosse pelo fato de, este tempo todo, ambos só pensarem em uma única coisa.
Aliás, em uma pessoa, a mesma pessoa...
Alberto não seria de todo
mau caráter. Na própria opinião, não era mesmo... Nem ao menos ambicioso.
Apenas acreditava na solução de qualquer problema. E não se prendia por demais
a impedimentos morais. Nesta quarta, encarou o trabalho normalmente. Para quem
só conseguia pensar em sua nova paixão, não era assim tão chato...
A proposta que fez a Paulo
podia parecer insensata. Mas era pragmática. Não sentia arrependimento e sim
satisfação, por ter corrido o risco. Cinquentão bem conservado, figura
agradável, um certo ar de abandono recuperável, que barba e cabelo grisalho lhe
davam, um tom suave mas malicioso na fala, essas coisas que agradam às
mulheres, achava que as complicações afetivas eram controláveis e, por que não
dizer?, manipuláveis.
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Alberto, lembranças. |
É bem verdade que nos
últimos tempos sua cama fora um deserto. Por um lado, uma entressafra de
mulheres maduras, uma questão sazonal, uma espécie de azar sexual continuado
que lhe atingia... De outro, a anti-propaganda. Aquela história de ser chamado
de tio pelas mocinhas, aqueles risinhos debochados... Culpa da TV, sabia muito
bem de onde tiravam o exemplo.
Restavam as balzaquianas,
essas, mais difíceis... Mesmo as frustradas no casamento, com maridos enlouquecidos
pelos negócios em crise (todo tipo de negócio...), mesmo essas, eram muito
exigentes. Todas queriam um ídolo, um Chico Buarque, um Tom Cruise para amar...
Não um Alberto qualquer. Não bastava o conteúdo, a experiência. Queriam também
a forma e, ainda mais, a fama. Ou então, se descasadas, carregavam atrás de si
(e lhe passavam às mãos...) uma penca insuportável de filhos.
Foi
nesse impasse que aparecera Odete. Falava demais, como todas, mas valia o
esforço. Ou pelo menos preenchia bem o buraco. Ou vice-versa, de preferência...
Primeiro, porque tinha o famoso tesão recolhido. Anos e anos de cama sem chama.
Fogo morto o marido... Ela, que devia ter vibrado de paixão na juventude, agora
via murchar o desejo de Paulo e o dela escorrer pelas noites sem sono... Este
entusiasmo por Alberto podia ser o canto do cisne, mas... E se o cisne cantasse
uma ópera? Alguns anos de ópera?
Ela, lembrou, cheia de
planos românticos... Só faltou falar numa casa no campo, meus livros, seus
discos... Louca para deixar o marido. Quase comovente, não fosse tão pouco
prática...
Alberto sabia de suas
limitações. O investimento era alto. Se não tivera condições de encarar um
casamento quando jovem, imagine agora, chegando à aposentadoria... Mas bem que
Odete poderia ajudá-lo a achar uma arte, um negócio qualquer que desse para
faturar algum... Sim, mas, antes disso o mais provável é que iriam à
bancarrota. Faltando dinheiro, iam brigar. Brigando, ele seduziria logo outra,
sua forma mais eficiente de obter equilíbrio emocional... Aí, já era!... Odete
iria embora, talvez de volta para o velho Paulo. Uma oportunidade perdida.
Em suma, não era uma boa
estratégia... A solução estava em testar uma nova possibilidade. Tinha que
acreditar que eram realmente civilizados, que podiam viver de forma mais
moderna, que tinham capacidade de aproveitar as oportunidades do momento. Mais
ou menos como ensinava o curso Pequenos Empreendedores, que tinha feito no
Sebrae... Já falara com Paulo, agora era a vez de Odete. Tinha que ser no dia
seguinte, quando ela viesse à sua casa. Talvez pela última vez, se não fosse
convincente...
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Triângulo, amores |
Realmente,
uma situação muito instável. Precisava criar, para os três, um ponto de
encontro, uma convergência, um interesse comum. Desenvolver esta possibilidade
no tempo, abrir uma quarta dimensão, fazer durar no futuro estas novas
conquistas. Tirar a situação do áspero chão dos rancores e levar para um nível
superior, um nível, talvez, espiritual...
Eis a questão: teria o
triângulo Alberto-Odete-Paulo potencial para se transformar em uma estrutura,
em particular, autossustentável?
Ou em, digamos, uma
pirâmide esotérica?...
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