domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 6 - Uma terça a parte

Em que, após o susto,
têm-se estranha proposta 
por quem não sabe de nada.



          "Paulo... É pra você, querido. Diz que se chama Alberto. A respeito de sua mulher, aquela..." 
Ficou irritado: "D. Maria Regina, já lhe disse! Nada de intimidades no trabalho!... Quem é esse Alberto? O que ele quer?" 
A secretária aliviou: "Desculpe, Dr. Paulo. Ele só disse isso, que era sobre D. Odete. Vai ver, alguma dívida..."
Não deu importância à ironia. Não costumava dar confiança a funcionários, muito menos às que aceitavam lhe servir na cama.  Para ele, praticamente uma relação trabalhista. Tinha pensado nessa ideia: como seria, neste caso, um Fundo de Garantia por Tempo de Serviço? E uma Aposentadoria? Talvez já tivesse aplicado, alguma vez, alguma Demissão por Justa Causa...
Odete... O trabalho afastara a decepção que sentira. O que ela dissera, a certeza da traição, o desprezo, tinham sido seus companheiros à noite. Quando saiu, às sete, Odete não tinha chegado. Não seria louca de ir embora de uma hora para outra, para sempre. E agora, esse Alberto... O que seria? Alguma joia que ficara sem pagar? Odete só fazia bobagens. E cada vez piores...

Paulo, ao telefone
"É o Paulo, marido da Odete? Meu nome é Alberto. Você me viu no Mistura Fina no sábado, e no domingo na praia. Queria propor uma conversa."
Surpresa total: "Ei, que atrevimento é esse?... Que cara-de-pau!... O que é isso? O que você quer?"
Alberto, diplomático: "Calma, precisamos conversar. Mas, não por telefone. Podemos nos encontrar no início da noite? Numa boa!... O que tenho a falar sobre Odete vai lhe interessar..."
        Paulo reconheceu calma na voz de Alberto, a curiosidade dominando a indignação... De qualquer modo, não sabia mesmo como resolver o problema, nem mesmo sabia de tudo... Resmungou, ameaçou o normalmente esperado nessas horas e aceitou o encontro. Pelo menos, se garantia, era bom negociante...
        Odete, quando acordou ao lado de Alberto nesta terça-feira, sentiu que ele faria parte de sua vida para sempre. Uma parte nova, recém aflorada, como uma ilha que um vulcão cria no mar. Lembrou-se dos documentários da TV, nas noites solitárias. Lançou-lhe um olhar carinhoso e sorridente: "Meu querido Krakatoa...". 
        Quando ele saiu para a repartição, às onze, Odete voltou para casa.  O sono da madrugada, que reparou o desgaste do corpo, esvaziou sua mente. Os planos da véspera ficaram nos sonhos do encontro. Uma ressaca, mas sem gosto ruim na boca, talvez uma certa dor de cabeça... Agora, não tinha saudades nem planos, como se passasse uma borracha em sua vida escrita a lápis. Ia começar outra vez. Mas, nem por isso estava alegre. Talvez não soubesse viver esta outra vida... Entrou em casa, ligou logo a TV.
Bar Lagoa, garçom
        Para Paulo, a varanda do Bar Lagoa tinha história, desde os tempos da juventude transviada e até o das gatinhas da faculdade ao lado. Mas nada em relação a Odete. Por isso aceitou a sugestão de Alberto. Ao chegar pediu logo um uísque caubói. Tinha que estar preparado pra tudo...
        Alberto chegou tranquilo. Parecia ter tido, na vida, um encontro desses por semana. A conversa, no início, não foi propriamente fácil. Paulo acusando Alberto de aproveitador, oportunista, mau-caráter... Alberto mostrando a Paulo sua incompetência, calhordice, desatenção para com Odete... Uma típica luta de machos, pretensamente civilizados, em disputa da fêmea. Aos poucos, cansados de bazófias e ameaças, com mais umas rodadas de uísque nas ideias, a disputa descambou para uma conversa típica de bar. Mais tarde, algumas confidências puderam ser ouvidas, deixando ainda mais mal-humorados (com toda razão!...) os históricos garçons do Bar Lagoa.
No final, lá pelas tantas, o golpe de mestre, a estocada final do desafiante Alberto (a esta altura, meio cúmplice...) que deixou Paulo mais confuso do que chegara. "Vamos dividir Odete entre os dois!", propôs, quase triunfal.

Odete, na TV
        Odete, a esta hora ainda em frente à TV, se sentia dividida...  Por um lado, os velhos hábitos e as garantias de Paulo, o cobertor emocional que carregava há tanto tempo. De outro, as novidades e os prazeres de Alberto, a redenção de um amor esperado, ainda não tardio de todo, apesar dos riscos...
        Odete era a terça parte de um triângulo amoroso. O ângulo obtuso. Um vértice aberto, receptivo. Mas, dolorido. A parte mais fraca.
De certa maneira, Odete, que desencadeara as forças em jogo, estava agora à parte das decisões do destino...   

Um comentário:

Guina Araújo Ramos disse...

Comentários da postagem original:
Guina, ainda não li mas já gostei! Abraço, Ana Rowe
Boa! Bjs, Fabrizia Granatieri