domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 5 - Uma segunda útil

Em que o novo do amor se impõe:
um lado assumindo o comando, 
o outro buscando saídas...



Segunda-feira, dia útil. Odete acordou cansada mas completa. Resolveu agir. Precisava avançar, dar um passo além da porta. A felicidade não morava mais ali, há muito tempo... Sabia aonde encontrá-la. Ligou para Alberto.
         Paulo saíra cedo, como sempre. Precisava de um tempo, não era um jogador de alto risco. Tinha que estudar, entender a situação. Tudo há tanto tempo tão estável naquela casa... Não diria tranquilo, mas que continuasse assim era tudo o que queria. Não era bom nessa de administrar confusões sentimentais, ainda mais as próprias. Já o caso com a nova secretaria, por exemplo, não lhe causava qualquer sobressalto. Entre as mulheres disponíveis, posto que havia mesmo que escutá-las, preferia as secretárias sonhadoras. Operárias, só em último caso. Ver Odete assim, apaixonada como uma mulher comum, isso assustava um pouco...
O prédio de Alberto
         E era mesmo assim que ela ia ao encontro de Alberto. Se Ipanema não era mais aquela, diziam, ela ainda enxergava nas ruas o espírito da velha bossa-nova. Como se pudesse de novo encontrar Vinicius, ele que um dia, da mesa do Jangadeiros, piscara o olho para a então garota de Ipanema, Odete. Em vez de décima mulher do poetinha, a mulher de Paulo, o antipoeta, seu único marido. 
O peso que dava a tais valores, fora os valores que Paulo acumulava, é o que a mantivera tanto tempo neste ultrapassado papel. Mas precisava mudar, tinha que mudar!... Já dizia a máxima natureba: "o hábito faz a doença". E Paulo, de uns anos pra cá, decididamente a deixava péssima... E ali estava, na Vinicius, no apartamento de Alberto. O que não era pouco... Um daqueles prédios de três andares, também contemporâneo da bossa-nova. Talvez algum sucesso tivesse sido composto ali, naquele chão de tacos axadrezados em que rolava agora com Alberto...

         Enquanto rolavam no chão, no sofá ou na cama, Odete ia inventariando o território. A sala, naturalmente simpática, o sol entrando pelos janelões. Sofria de excesso de móveis, absolutamente irreconciliáveis entre si. Assustadora variedade de estampados, em almofadas encardidas... Encolhidas num canto, plantas sedentas pareciam implorar pela faxineira semanal. Da estante, uma mistura incompreensível de fios, livros, CDs, som e TV, que assustava. Mas que, ao menos, se diria multifuncional...  
Apê de Alberto, decoração
No quarto, por cima dos móveis, espalhado pelo chão, o caos... Pela porta meio caída do armário, confirmou o caos interior.  Se abrisse a gaveta da mesinha de cabeceira veria uma espécie de sala de troféus: brincos sem par, uma tampa de batom, bijuterias baratas, uma espécie de enfeite de liga de dançarina de cancã...  No fundo, enroladinha numa argola, uma calcinha.  
Quanto ao sexo, talvez pela prática dele, nada a reclamar! Não sentia prazer igual desde... desde a madrugada de sábado, quando ela e Paulo... "Puxa, é a segunda em dois dias!... Depois de tanto tempo..." Mas, a diferença era evidente. Paulo havia sido seduzido, induzido a fazer amor, Alberto não. Aliás, Alberto amava com muita facilidade... Envolvente, sempre um gesto à frente do desejo dela. Um amante meticuloso, criativo. Tinha na cama a categoria que faltava à sua casa.
Odete, se alguma vez se sentiu em um sonho, foi então... Amada por Paulo, agora não mais seu senhor e dono. Amante de Alberto, este sim, seu novo herói libertador. Não conseguia conter o fluxo da imaginação, que criava novos mundos e a afastava do real. "Querido, estou tão feliz!", suspirou. "Ah, queria nunca mais sair do seu lado... Te amar para sempre".  Sentiu-se um pouco boba, mas, pelo menos, sincera. Espalhou-se na cama, ocupando um espaço que já lhe parecia seu.  
Odete, seus discos
E pôs-se a desfiar, num tom abusado mas romântico, as muitas coisas que fariam juntos, da ida à Europa às proezas eróticas.   E dos jogos na cama para as mudanças no apartamento, que fariam logo depois que ela viesse morar ali, a nova pintura nas paredes, a reforma do sofá, as cortininhas de renda, o cachorrinho, a necessária máquina de lavar... Poderiam muito bem viver com a pensão deixada por seu pai, militar, além do salário de Alberto, analista de sistemas num ministério. Não era muito, mas logo o governo ia acabar com a política de arrocho, ela também achava... Arrematou com uma declaração de princípios: "Não vou trazer nada daquela casa! A não ser minhas roupas, minhas joias, é claro. A penteadeira que ganhei de vovó, as taças de cristal, o que mais?... Ah!, meus discos. Não vou abandonar meu João Gilberto!"
Alberto seguia fazendo "hum, hum", apreciando os detalhes do bem conservado corpo de Odete, excitando os mamilos, acariciando as coxas, mordiscando as nádegas, parecia concordar com tudo... Até que, com um toque firme, mas carinhoso, bem no ponto e momento certos, que deixou a desmilinguida Odete entregue, disse: "Acho que vou falar com o Paulo. Depois me dá o telefone dele.".
Odete não estranhou. Não perguntou o porquê, não quis nem saber...  Achou muito normal. 
Neste momento, se dispunha a concordar com qualquer pedido: "Sim, sim, depois te dou... Ai!... Continua, não para não..."

Um comentário:

Guina Araújo Ramos disse...

Comentários da postagem original:
Estou adorando “Odete nunca foi santa”! Você escreve muito bem! Tem humor, sensibilidade e um texto enxuto. As fotos entremeadas são lindas, ajudando a contar a história. Ler este folhetim é quase como ver um filme. Muito bom! Aguardo curiosa os próximos capítulos/fotogramas! Beijos Perla Nanchery. Como faço pra comprar “Rio de Amores”?
Muita gentileza sua, Perla. Gosto muito deste texto também. E adiante vai ficar ainda melhor, acho eu... "Rio de Amores" está à venda no Buriti Sebo Literário, clique no link para entrar em contato. Bjs, Guina
Valeu Guina1 abs Alcyr Cavalcanti