Odete reaparece
Encontrei Odete, mas nem parecia...
Não tenho, na verdade, o hábito de encontrar personagens,
nem tenho tantos que me levem a criar tão inusitado hábito... Não seria
problema para Jorge Amado, que nem precisava descer as ladeiras de Salvador:
eles é que iam, em romaria, à sua casa... E, afinal, bastava ligar a televisão
na hora da novela, havia sempre uma delas ambientada na Bahia... Personagens de
Paulo Coelho também não faltarão a encontros periódicos com seu autor. Nem que
ele vá buscá-los, nos Pirineus ou no Egito, para mais um best-seller
psico-esotérico, coisas do sucesso...
E costumam criar personagens a partir de pessoas comuns,
vizinhos, amigos de fé, meio caminho andado para reencontrá-los no meio do
caminho... Eu, que mal começo a entrar nesse ardiloso terreno, nesse caos
inicial de caracteres e figurações, tentando ainda separar os reais dos
imaginados, aprendiz de feiticeiro na fase da sopa de letrinhas, todo direito
tenho eu de estranhar...
E tinha já tomado umas cervejas, que a lentilhada (uma
falsa feijoada à base de lentilhas...), feita e oferecida pelo Fiore em sua casa,
estava muito salgada. Opinião unânime, confirmada até por amigas doutoras em
física, o que dava certo estofo científico ao meu veredicto culinário. Sabe-se
que não se pode aproveitar toda a água do cozimento das carnes, todo mundo sabe
disso, mas ele foi ouvir a Maria Cláudia, errou a mão...
Além do mais, era segunda de Carnaval e, se eu estava na
concentração do “Bloco (justamente...) de Segunda”, seria por algum tipo de
necessidade (cultural ou biológica, sei lá, não é hora de entrar nessas
polêmicas...), e nem fazia a menor ideia de quem era a figura. Não tinha pinta
de personagem, nem mesmo de uma lista telefônica, quanto mais dos meus
contos...
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Sonia, luz |
Apresentada pela Sonia, astróloga, arquiteta e amiga, eu, até
gastando alguma simpatia, insisti no nome: "Qual é mesmo?"... Antes
de ligarem o caminhão de som, aqueles tantos reencontros por metro quadrado já
provocavam um burburinho que empolgava a avenida!... Ou melhor, a rua
Voluntários da Pátria, em frente à Cobal do Humaitá, esquina da rua Marques.
Por isto é que o nome, Odete, ganhou destaque: estava completamente fora de
contexto!... Devo ter tentado me acostumar à ideia ou quis deixá-la mais
ambientada, sei lá... Só sei que disse de supetão, meio pretensioso: "Já
escrevi muito a seu respeito..."
Aí, tive que explicar. Falei do curso
do Carlos Eduardo Novaes, aquele que, de crônicas, virou de contos... Das
personagens da Maria Helena... Do início da história no clima enevoado do
Mistura Fina, proposto pelo Carlos Müller... De como assumi os personagens e de
como fui dando andamento aos dez capítulos, um por semana, acrescentando
situações, sempre centrando a história, bem carioca, em cima de Odete, mulher
charmosa, um pouco safada, pivô, no final, de um quarteto, um ex-trio que virou
quarteto, e de como todos terminaram envolvidos uns com os outros, uma espécie
de "ménage-a-trois"
superabundante, maior sacanagem...
Até então, uma mulher qualquer, a
Odete à minha frente... Embora, dito assim, possa ser mal entendido: apenas não
parecia muito ser a minha personagem... A tal questão do distanciamento!... A
gente procura se afastar, olhar de fora, não se envolver com os personagens que
inventa... Aí, um dia, sem maiores etiquetas, começa a encontrá-los pelas
ruas!... O jeito é manter a pose, tentar não passar vexame. Tinha, ao menos,
uma vantagem técnica: ela fazia muito menos ideia ainda de que pudesse ser
minha personagem!...
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O autor, no bloco |
Sonia, para equilibrar a situação, talvez reconhecendo meus
privilégios de autor, avisou: "Ela também pode escrever a seu
respeito..." Achei muito engraçado... E, como era Carnaval, com toda
aquela explícita inversão de valores, sorri com o melhor dos meus escarlates
lábios encharcados de batom (e olha que eu tomei o cuidado de tirar o excesso,
com papel higiênico, ao espelho, antes de sair...) e com os meus mais brancos e
brilhantes dentes (embora, honestamente, não fossem tantos assim, os meus,
naquela fachada, mas, como era Carnaval...).
Ora, não tendo observado as mulheres tanto tempo à toa na vida,
sorri. Sim, mas também calei, porque na sequência veio a ameaça: "E sabe
onde você pode aparecer?... Na Globo, no Casseta e Planeta!... Ela
escreve pra eles..."
O que me deixou meio desenxabido... Sinceramente, Odete tinha
mudado muito!... Quando a larguei, escrevendo Fim na sua história, um
folhetim quase anacrônico, que por razões meio duvidosas intitulei “Odete nunca
foi santa” e classifiquei como "Rodada Carioca", ela estava realmente
muito autônoma (bolas, fui eu que decidi isso!...), vivendo por conta própria,
depois de vender umas ações, herança do pai. Logo ia começar a trabalhar, não
aceitaria mais ficar dependente de Paulo, e muito menos de Alberto. Mas não
imaginei que tipo de trabalho faria... O folhetim já estava grande demais, tive
até que condensar. E, de qualquer modo, a questão central era a afetiva,
assuntos de trabalho não aguentariam tantas laudas...
Mas, tudo bem, fazia sentido... Ela tinha contatos, e lembro
mesmo que coloquei em seus pensamentos, no texto, algumas reflexões quase
literárias... Seria razoável que fizesse algum curso de roteiro, entrasse para
as oficinas da Globo e até fosse aproveitada, muito democraticamente, como redatora
de humorísticos. Hoje em dia, isso dá muito status... Não sei bem o
quanto de senso de humor lhe passei, mas ali estava ela, olhando o movimento,
com uma postura observadora, divertida, talvez pegando piadas no ar... Bem,
fingi desimportância: "Se aparecer meu nome lá, já sei que é
comigo!".
Mas acho que me entreguei... Creio que foi então que ela
percebeu que era realmente eu o seu autor mais exato. Era o tipo de comentário
que todo mundo fazia, e principalmente ela, no meu conto afora. É, eu precisava
fazer algo, ali...
Estava tudo tão carnavalesco que, se bem aplicada, uma pequena
crueldade passaria por brincadeira, parte da patuscada, como se dizia
antigamente... Declarei, diante da expectativa de todos, que tantos entravam e
tantos saíam da conversa, a bateria rugindo ao fundo: "Vou fazer uma coisa
inédita! Que acho que sempre quis fazer!..." E, rápido como quem resolve,
apliquei-lhe na bochecha, a direita, o mais meloso beijo de batom vermelho que
um homem poderia produzir!... Beijo escancarado, que ficou como um grito de
carnaval no seu rosto, um pouco mais pálido desde então...
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Odete, surpresa |
Admito que não tratei Odete tão bem assim enquanto esteve por
conta da minha imaginação. Mas, não é esse o destino das personagens realmente
marcantes?... Não que não tivesse resolvido bem a história, mas, admito, em
alguns trechos reservei-lhe um tanto a mais de sofrimento... Muitas dúvidas,
uma paixão meio inconsequente, uns envolvimentos questionáveis... Sim, uma
vingança da parte dela, aceito, não seria de todo impossível!
Caiu bem em Odete um
sorriso maroto... Uma certa sabedoria (até pode ser crédito meu...), notava-se
um crescimento interior. Tudo que a fiz viver, fora útil... Mas, o que mais
acontecera a Odete, para além dos meus textos?... Teria sido personagem de mais
alguém?... Quando teria mudado de lado no texto?... Difícil acreditar em tão
autônoma autossuficiência...
É verdade que Maria Helena e Carlos não tinham voltado ao tema, Lídia e Lila abandonaram no primeiro exercício, Noêmia a detestara, nunca lhe deu atenção... O Novaes tinha mais o que fazer e, afinal, a personagem era nossa, dos alunos. Correra risco com o Chico, que ainda no curso a colocara numas histórias meio escabrosas, misturando-a com um ginecologista gêmeo de um dentista, tudo muito esquisito, nem faço questão de lembrar... Imagino como ela o trataria agora, se ele desfilasse à sua frente, e ainda mais se a beijasse...
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Personagens: mistérios... |
É verdade que Maria Helena e Carlos não tinham voltado ao tema, Lídia e Lila abandonaram no primeiro exercício, Noêmia a detestara, nunca lhe deu atenção... O Novaes tinha mais o que fazer e, afinal, a personagem era nossa, dos alunos. Correra risco com o Chico, que ainda no curso a colocara numas histórias meio escabrosas, misturando-a com um ginecologista gêmeo de um dentista, tudo muito esquisito, nem faço questão de lembrar... Imagino como ela o trataria agora, se ele desfilasse à sua frente, e ainda mais se a beijasse...
Cresceu, mas não em tamanho, que a fiz com uns
cinco centímetros a mais... De personagem desamparada a mulher independente,
vejam só!... Capaz de encarar seu autor no meio da rua, no meio do bloco... Não
diria qualquer lugar ou circunstância, pois não tenho tanta experiência assim
em relacionamentos entre autores e sua obra emancipada, que, já adivinho, podem
ser muito estranhos... Suponho que tenha vivido situações mais criativas do que
cruéis desde que lhe fechei as páginas, e, acreditem, gostaria, mesmo, de
tê-las escrito... Talvez tenha se tornado mais prudente. Parecia ressabiada,
disse que ia ficar só olhando, que iria para casa quando o bloco saísse... A
altivez, ah, isso não perdera mesmo, devo ter desenvolvido bem este traço...
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Comissão de frente |
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Carnaval, chamados |
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Carnaval, convites |
Ganhei um topete
de espuma e muitos borrifos. Subi a Martins Ferreira imitando a comissão de
frente, que imitava uma comissão de frente, mas era muito mais engraçada!...
Ajudei a chamar, na esquina da São Clemente, as freiras do Colégio Nossa
Senhora de Lourdes ("desce, desce!"), que assistiam no escuro, atrás
das vidraças do terceiro andar.
Lá pelo Largo dos Leões, eu mais
tropeçava nas monstrengas caixas de isopor dos ambulantes do que pulava...
Parei um tempo conversando com alguém que era amiga de alguém que eu não
conseguia me lembrar de onde... Estava cansado, fora de forma, esta vida
sedentária tem seus percalços...
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Carnaval, encontros |
Dessa vez, estava com outra amiga,
nem perguntei por Sonia... Essa me pareceu vagamente conhecida, não seria a
Laura?... Não acredito, mas escrevi pouco sobre ela, podia ser. Se me
surpreendi com Odete...
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Autor, adeus |
Não soube muito que dizer.
Perguntei pelo batom, adivinhei que tinha vindo na contramão da rua Marques, em
vez de seguir o bloco. Dei um sorrizinho sem graça ("Aí, hem?, você não
disse que tava indo embora?..."), mas só recebi um desdém olímpico. Notei
que recuou um passo quando fui mais efusivo... "É isso aí!", eu
disse, conclusivo. Fingi tropeçar no meio-fio e, já emendando, desci em direção
à Cobal.
Foi bom: os fantasmas literários me
deixaram em paz... Fiquei só com os outros, os habituais... Ainda estacionei na
frente das mesas, vago, olhando, um pouco vazio, o desfile de fantasias, todas
à procura dos seus enredos...
Um comentário:
Comentários da postagem original:
S U P E R! D E M A I S! Estou embasbacado com a tua fluência escrita. Viajei muito entre os lugares e situações descritas; em algumas até achei que estava in loco nos acontecimentos. “Patuscada” fez-me lembrar nosso amigo Perfeito António Fortuna Serra Lopes, que nos ensinou a cantar: “O lagarto mais a cobra Trá lá rá Triu li rá rá... Fizeram uma patuscada, O lagarto comeu tudo Trá lá rá Triu li rá rá E a cobra ficou sem nada... O maroto do lagarto Trá lá rá Triu li rá rá Está enterrado na areia Quem o for desenterrar Tem cem anos de cadeia... Trá lá rá Triu li rá rá” Lembras? Uma vez, em casa, lá no velho IAPI, estava eu a cantar essa cantiga portuguesa quando meu pai, olhando-me espantado e emocionado, perguntou quem havia me ensinado, pois ele a havia aprendido ainda no jardim da infância, lá em Portugal! Emocionante, não? Sucesso! Beijão, Band.
Oi, Guina, (...) ainda não pude ler a saga da Odete, mas vou ler toda com certeza, ainda mais agora que a obra está completa. (Francisco Aguiar)
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