domingo, 30 de junho de 2019

Cap. 11 - Apêndice inesperado


Odete reaparece

Encontrei Odete, mas nem parecia... 
Não tenho, na verdade, o hábito de encontrar personagens, nem tenho tantos que me levem a criar tão inusitado hábito... Não seria problema para Jorge Amado, que nem precisava descer as ladeiras de Salvador: eles é que iam, em romaria, à sua casa... E, afinal, bastava ligar a televisão na hora da novela, havia sempre uma delas ambientada na Bahia... Personagens de Paulo Coelho também não faltarão a encontros periódicos com seu autor. Nem que ele vá buscá-los, nos Pirineus ou no Egito, para mais um best-seller psico-esotérico, coisas do sucesso... 
E costumam criar personagens a partir de pessoas comuns, vizinhos, amigos de fé, meio caminho andado para reencontrá-los no meio do caminho... Eu, que mal começo a entrar nesse ardiloso terreno, nesse caos inicial de caracteres e figurações, tentando ainda separar os reais dos imaginados, aprendiz de feiticeiro na fase da sopa de letrinhas, todo direito tenho eu de estranhar...


O eu, sozinho
E tinha já tomado umas cervejas, que a lentilhada (uma falsa feijoada à base de lentilhas...), feita e oferecida pelo Fiore em sua casa, estava muito salgada. Opinião unânime, confirmada até por amigas doutoras em física, o que dava certo estofo científico ao meu veredicto culinário. Sabe-se que não se pode aproveitar toda a água do cozimento das carnes, todo mundo sabe disso, mas ele foi ouvir a Maria Cláudia, errou a mão...
Além do mais, era segunda de Carnaval e, se eu estava na concentração do “Bloco (justamente...) de Segunda”, seria por algum tipo de necessidade (cultural ou biológica, sei lá, não é hora de entrar nessas polêmicas...), e nem fazia a menor ideia de quem era a figura. Não tinha pinta de personagem, nem mesmo de uma lista telefônica, quanto mais dos meus contos...

       
Sonia, luz
Apresentada pela Sonia, astróloga, arquiteta e amiga, eu, até gastando alguma simpatia, insisti no nome: "Qual é mesmo?"... Antes de ligarem o caminhão de som, aqueles tantos reencontros por metro quadrado já provocavam um burburinho que empolgava a avenida!... Ou melhor, a rua Voluntários da Pátria, em frente à Cobal do Humaitá, esquina da rua Marques. Por isto é que o nome, Odete, ganhou destaque: estava completamente fora de contexto!... Devo ter tentado me acostumar à ideia ou quis deixá-la mais ambientada, sei lá... Só sei que disse de supetão, meio pretensioso: "Já escrevi muito a seu respeito..."
Aí, tive que explicar. Falei do curso do Carlos Eduardo Novaes, aquele que, de crônicas, virou de contos... Das personagens da Maria Helena... Do início da história no clima enevoado do Mistura Fina, proposto pelo Carlos Müller... De como assumi os personagens e de como fui dando andamento aos dez capítulos, um por semana, acrescentando situações, sempre centrando a história, bem carioca, em cima de Odete, mulher charmosa, um pouco safada, pivô, no final, de um quarteto, um ex-trio que virou quarteto, e de como todos terminaram envolvidos uns com os outros, uma espécie de "ménage-a-trois" superabundante, maior sacanagem...
Até então, uma mulher qualquer, a Odete à minha frente... Embora, dito assim, possa ser mal entendido: apenas não parecia muito ser a minha personagem... A tal questão do distanciamento!... A gente procura se afastar, olhar de fora, não se envolver com os personagens que inventa... Aí, um dia, sem maiores etiquetas, começa a encontrá-los pelas ruas!... O jeito é manter a pose, tentar não passar vexame. Tinha, ao menos, uma vantagem técnica: ela fazia muito menos ideia ainda de que pudesse ser minha personagem!... 
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O autor, no bloco
Sonia, para equilibrar a situação, talvez reconhecendo meus privilégios de autor, avisou: "Ela também pode escrever a seu respeito..." Achei muito engraçado... E, como era Carnaval, com toda aquela explícita inversão de valores, sorri com o melhor dos meus escarlates lábios encharcados de batom (e olha que eu tomei o cuidado de tirar o excesso, com papel higiênico, ao espelho, antes de sair...) e com os meus mais brancos e brilhantes dentes (embora, honestamente, não fossem tantos assim, os meus, naquela fachada, mas, como era Carnaval...).
Ora, não tendo observado as mulheres tanto tempo à toa na vida, sorri. Sim, mas também calei, porque na sequência veio a ameaça: "E sabe onde você pode aparecer?... Na Globo, no Casseta e Planeta!...  Ela escreve pra eles..."
O que me deixou meio desenxabido... Sinceramente, Odete tinha mudado muito!... Quando a larguei, escrevendo Fim na sua história, um folhetim quase anacrônico, que por razões meio duvidosas intitulei “Odete nunca foi santa” e classifiquei como "Rodada Carioca", ela estava realmente muito autônoma (bolas, fui eu que decidi isso!...), vivendo por conta própria, depois de vender umas ações, herança do pai. Logo ia começar a trabalhar, não aceitaria mais ficar dependente de Paulo, e muito menos de Alberto. Mas não imaginei que tipo de trabalho faria... O folhetim já estava grande demais, tive até que condensar. E, de qualquer modo, a questão central era a afetiva, assuntos de trabalho não aguentariam tantas laudas...
Mas, tudo bem, fazia sentido... Ela tinha contatos, e lembro mesmo que coloquei em seus pensamentos, no texto, algumas reflexões quase literárias... Seria razoável que fizesse algum curso de roteiro, entrasse para as oficinas da Globo e até fosse aproveitada, muito democraticamente, como redatora de humorísticos. Hoje em dia, isso dá muito status... Não sei bem o quanto de senso de humor lhe passei, mas ali estava ela, olhando o movimento, com uma postura observadora, divertida, talvez pegando piadas no ar... Bem, fingi desimportância: "Se aparecer meu nome lá, já sei que é comigo!".
Mas acho que me entreguei... Creio que foi então que ela percebeu que era realmente eu o seu autor mais exato. Era o tipo de comentário que todo mundo fazia, e principalmente ela, no meu conto afora. É, eu precisava fazer algo, ali...
Estava tudo tão carnavalesco que, se bem aplicada, uma pequena crueldade passaria por brincadeira, parte da patuscada, como se dizia antigamente... Declarei, diante da expectativa de todos, que tantos entravam e tantos saíam da conversa, a bateria rugindo ao fundo: "Vou fazer uma coisa inédita! Que acho que sempre quis fazer!..." E, rápido como quem resolve, apliquei-lhe na bochecha, a direita, o mais meloso beijo de batom vermelho que um homem poderia produzir!... Beijo escancarado, que ficou como um grito de carnaval no seu rosto, um pouco mais pálido desde então... 
Odete, surpresa
Escorreguei nos braços de umas velhas amigas, a excitação da bateria me dando cobertura, fiz que ainda falaria alguma coisa bastante espirituosa e, aí, sob seu olhar um tanto frio (que tantas vezes destaquei no meu texto...), fui caindo fora, sambando o meu melhor!... Que não era muito, mas era um pouco mais glorioso naquela hora, eu notei. 
Admito que não tratei Odete tão bem assim enquanto esteve por conta da minha imaginação. Mas, não é esse o destino das personagens realmente marcantes?... Não que não tivesse resolvido bem a história, mas, admito, em alguns trechos reservei-lhe um tanto a mais de sofrimento... Muitas dúvidas, uma paixão meio inconsequente, uns envolvimentos questionáveis... Sim, uma vingança da parte dela, aceito, não seria de todo impossível! 


       Caiu bem em Odete um sorriso maroto... Uma certa sabedoria (até pode ser crédito meu...), notava-se um crescimento interior. Tudo que a fiz viver, fora útil... Mas, o que mais acontecera a Odete, para além dos meus textos?... Teria sido personagem de mais alguém?... Quando teria mudado de lado no texto?... Difícil acreditar em tão autônoma autossuficiência... 

Personagens: mistérios...

       É verdade que Maria Helena e Carlos não tinham voltado ao tema, Lídia e Lila abandonaram no primeiro exercício, Noêmia a detestara, nunca lhe deu atenção... O Novaes tinha mais o que fazer e, afinal, a personagem era nossa, dos alunos. Correra risco com o Chico, que ainda no curso a colocara numas histórias meio escabrosas, misturando-a com um ginecologista gêmeo de um dentista, tudo muito esquisito, nem faço questão de lembrar... Imagino como ela o trataria agora, se ele desfilasse à sua frente, e ainda mais se a beijasse...
Cresceu, mas não em tamanho, que a fiz com uns cinco centímetros a mais... De personagem desamparada a mulher independente, vejam só!... Capaz de encarar seu autor no meio da rua, no meio do bloco... Não diria qualquer lugar ou circunstância, pois não tenho tanta experiência assim em relacionamentos entre autores e sua obra emancipada, que, já adivinho, podem ser muito estranhos... Suponho que tenha vivido situações mais criativas do que cruéis desde que lhe fechei as páginas, e, acreditem, gostaria, mesmo, de tê-las escrito... Talvez tenha se tornado mais prudente. Parecia ressabiada, disse que ia ficar só olhando, que iria para casa quando o bloco saísse... A altivez, ah, isso não perdera mesmo, devo ter desenvolvido bem este traço...
Comissão de frente
Os cabelos mais alourados?...  Não sendo fácil saber a cor dos cabelos de uma mulher, tratei de me concentrar no rosto. Não tinha mais resquícios de sol na pele, o que atestava grandes mudanças. Ficava até difícil imaginar Odete sem praia, sem nem ao menos uma piscina no fim de semana, talvez andasse meio viciada em trabalho... O ritmo para quem trabalha na Globo, sabemos todos, é pesado (não defendem a ordem capitalista por acaso...), mas será que não lhe sobraria tempo para tirar umas folgas?... Se fosse a "velha" Odete, eu bem que lhe criaria umas amizades com outras figuras globais, uns passeios por Angra, de quando em vez... Não seria de estranhar que aparecesse em fotos tiradas na Ilha de Caras. Mas, agora, a escolha era dela, quê que eu podia fazer?... Sem dúvida, tinha mudado mesmo.


Carnaval, chamados
Deve ser coisa afetiva... Estão aí, nas paixões, os grandes impulsos revolucionários!... Não há mudanças sem um grande amor por trás ou melhor ainda, pela frente!... Pode ser coisa apenas do meu condicionamento cultural, mas, se é assim, percebo que muitos autores me imitam... Talvez ela tenha um caso com um dos Cassetas. Só pode ser o Marcelo Madureira!... Ou, o contato com a loucura programada deles pode ter lhe dado uma base excessiva de sensatez, e quem sabe estaria ela lá, entre eles, apenas como um contraponto?... Por outro lado, parecia sozinha. Mas, eu também, coberto de espuma e cerveja, não parecia?...

Carnaval, convites
Dizem que foi um dos mais divertidos desfiles do “Bloco de Segunda” em (não) muitos anos, eu não sei, não me atrevo a me sentir responsável... Apenas pulei quando o carro de som passava (ou eu passava por ele...), cantei quando entendi a letra (alguma coisa sobre o Brasil e seus fiascos...), descansei quando achava um palmo de calçada vazio (em pé mesmo...) e apreciei as mulheres (menos nuas do que no Sambódromo, mas muito mais próximas!...) quando nem elas (nem seus acompanhantes...) estavam me olhando.
Ganhei um topete de espuma e muitos borrifos. Subi a Martins Ferreira imitando a comissão de frente, que imitava uma comissão de frente, mas era muito mais engraçada!... Ajudei a chamar, na esquina da São Clemente, as freiras do Colégio Nossa Senhora de Lourdes ("desce, desce!"), que assistiam no escuro, atrás das vidraças do terceiro andar.

Lá pelo Largo dos Leões, eu mais tropeçava nas monstrengas caixas de isopor dos ambulantes do que pulava... Parei um tempo conversando com alguém que era amiga de alguém que eu não conseguia me lembrar de onde... Estava cansado, fora de forma, esta vida sedentária tem seus percalços...
Carnaval, encontros
Por isso, quando a reencontrei, fiquei sem ter o que falar. A marca do beijo já tinha sumido, como ela conseguira?... Não acredito que as mulheres, muito menos a "nova" Odete, tenham um “Eliminador de Batom Tabajara” no fundo da bolsa. (Hei, coisa útil para homens!...) Assim, de novo, e de repente, na luz noturna das ruas, ela me assustou um pouco, me apareceu como um quase exato fantasma literário... Ou seria eu, a essa altura, um fantasma do autor que lhe fora um dia?... Aquela história do escritor que perde o controle sobre o personagem... Sei não, nunca pensei que fosse tão longe.  E que, um dia, eu estivesse dentro dela...
Dessa vez, estava com outra amiga, nem perguntei por Sonia... Essa me pareceu vagamente conhecida, não seria a Laura?... Não acredito, mas escrevi pouco sobre ela, podia ser. Se me surpreendi com Odete...
Autor, adeus
 Não soube muito que dizer. Perguntei pelo batom, adivinhei que tinha vindo na contramão da rua Marques, em vez de seguir o bloco. Dei um sorrizinho sem graça ("Aí, hem?, você não disse que tava indo embora?..."), mas só recebi um desdém olímpico. Notei que recuou um passo quando fui mais efusivo... "É isso aí!", eu disse, conclusivo. Fingi tropeçar no meio-fio e, já emendando, desci em direção à Cobal.
Foi bom: os fantasmas literários me deixaram em paz... Fiquei só com os outros, os habituais... Ainda estacionei na frente das mesas, vago, olhando, um pouco vazio, o desfile de fantasias, todas à procura dos seus enredos... 

Um comentário:

Guina Araújo Ramos disse...

Comentários da postagem original:
S U P E R! D E M A I S! Estou embasbacado com a tua fluência escrita. Viajei muito entre os lugares e situações descritas; em algumas até achei que estava in loco nos acontecimentos. “Patuscada” fez-me lembrar nosso amigo Perfeito António Fortuna Serra Lopes, que nos ensinou a cantar: “O lagarto mais a cobra Trá lá rá Triu li rá rá... Fizeram uma patuscada, O lagarto comeu tudo Trá lá rá Triu li rá rá E a cobra ficou sem nada... O maroto do lagarto Trá lá rá Triu li rá rá Está enterrado na areia Quem o for desenterrar Tem cem anos de cadeia... Trá lá rá Triu li rá rá” Lembras? Uma vez, em casa, lá no velho IAPI, estava eu a cantar essa cantiga portuguesa quando meu pai, olhando-me espantado e emocionado, perguntou quem havia me ensinado, pois ele a havia aprendido ainda no jardim da infância, lá em Portugal! Emocionante, não? Sucesso! Beijão, Band.
Oi, Guina, (...) ainda não pude ler a saga da Odete, mas vou ler toda com certeza, ainda mais agora que a obra está completa. (Francisco Aguiar)