"Há
um renovar-se de esperanças, porque hoje é sábado."
(Vinicius
de Moraes, in "O Dia da Criação")
Todo dia, ah, quem dera todo
dia fosse sábado!
Sábado é o dia exato.
Nem o peso excessivo da semana, nem o relaxamento demasiado do domingo. O momento
ideal de ser feliz provavelmente cairia num sábado... Que bom se o calendário
fosse uma interminável sucessão de sábados!
O sábado é a melhor síntese
feita pelo bicho humano no correr desses milênios entre o esforço de transcender
o animal e o sentimento de ser sempre um ser que sente. Evoluindo, crescendo,
um dia ele acorda sábio e percebe que na verdade a vida é um sábado infinito.
Sendo sábado toda solução é
possível. Odete soube disso ao se espreguiçar de manhã, cercada de lembranças
antigas e recentes, bossa nova tocando no rádio de cabeceira versos de suas
músicas preferidas. Sim, o espírito do dia lhe daria o tom...
"Eu
sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar..."
Odete e Paulo concordaram que
seria melhor viverem separados. Ela aceitou as ponderações dos amigos. A grande
maioria achava que devia ficar sozinha, depois de passar por toda aquela
situação desagradável, o mal-estar gerado pela proposta de Alberto. Precisava
de autonomia, tinha uma nova postura existencial e ética a defender. Vendeu as
ações da Petrobras, presente do sogro no dia do casamento, e aplicou o
dinheiro. Tinha sua própria fonte de renda. Não seria razoável manter-se sob o
mesmo teto que Paulo...
Assim sendo, levantaram uma
parede, fecharam umas portas, ampliaram o antigo quarto de hóspedes,
acrescentaram uma cozinha, trocaram o portão lateral de saída e mais sinteco,
pintura... Pronto: Odete passou a ter a
sua própria casa!
Por outro lado, certos acontecimentos
exigiam a presença dos dois, até para não decepcionar os velhos amigos. Assim,
continuaram a frequentar festas de casamento no Copa, posses de presidentes do
Jóquei, jantares oficiais no Palácio Laranjeiras.
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Odete e Paulo, vinhos |
E assim foi. Às vezes,
voltando de uma formatura na PUC, iam para a casa dela, rever velhos vídeos.
Outras, depois de um balé beneficente, subiam para a dele. Paulo fazia mesuras
e rapapés, Odete imitava as bailarinas. Entravam na dança. Só não faziam mais o
pas-de-deux...
"Ela é carioca, olha o jeitinho dela andar.
E ninguém tem carinho assim para dar."
E ninguém tem carinho assim para dar."
Odete e Laura retomaram a velha
amizade. Elas, que tinham sido unha e carne na adolescência, voltaram à maior
cumplicidade. Laura deu um banho de loja em Odete, numa linha mais leve,
colorida, estilo M. Officer. Esta retribuiu, levando a amiga aos melhores
salões da Zona Sul, do New Maritê ao Jambert, para lhe tirar um certo mofo
psicodélico, ainda dos 70. Conseguiu até uma vaguinha na agenda do Pitanguy,
mas Laura preferiu mudar de ideia do que mudar de nariz... Chegaram a ir a um spa
na serra, mas a comida e os instrutores deixaram muito a desejar.
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Odete e Laura, cômoda |
E assim foi. Cada vez que uma
comprava uma novidade, fosse para a casa, fosse para o corpo, a outra logo
vinha conhecer. Experimentavam também exercícios e técnicas que aumentavam o
prazer do contato. Laura abria para Odete uma nova percepção. Odete entregava a
Laura uma nova vibração. As duas, juntas, numa teia de emoções...
"...que no peito de um desafinado também bate
um coração."
Laura e Alberto tinham a mesma
ideologia. Ela, numa das vindas ao Brasil, no início da década de 80, ajudara a
fundar o núcleo do PT na Gávea. Ele participara das campanhas do Lula a
presidente, desde a primeira, em 89. Decididamente, não engrossavam o coro dos
contentes. Logo que se conheceram iniciaram uma acalorada discussão sobre a
necessidade de estimular a autocrítica dentro do partido, desde os militantes
de base até os membros do Diretório Nacional. Não eram afinados com nenhuma
tendência, mas acreditavam na organização. Passaram a ir juntos às festas dos
candidatos e às reuniões de avaliação.
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Laura e Alberto, música |
E assim foi. Por muitas
campanhas políticas, majoritárias ou proporcionais, e tantos outros shows no
Jazzmania ou no People, havia sempre uma avaliação programática e/ou um
showzinho particular depois, na casa de um deles. Laura descobrindo os
instrumentos de Alberto. Ele apreciando o perfil carismático dela.
"São
demais os perigos desta vida, pra quem tem paixão..."
Alberto e Paulo dividiam ao
menos uma paixão: o Botafogo. Apesar de ser
o clube da estrela solitária, passaram a ir juntos ao Maracanã, até cruzavam a
cidade para torcer no Engenhão. Sofriam com as derrotas, mas nas vitórias
tratavam de comemorar!...
Num sábado, jogo à tarde no
Maracanã, vitória de 3 x 0 sobre o Vasco, voltaram para o apartamento de Alberto.
Reviram o jogo na TV a cabo, só para curtir os detalhes. Brindaram com cerveja
e doses de uísque. Relembraram os melhores momentos mil vezes, gritando a cada
gol como se fosse ao vivo, uma goleada infindável, pulando como criança,
xingando o juiz, cantando musiquinhas obscenas, se abraçando.
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Paulo e Alberto, paixão |
E assim foi. Além do Botafogo,
viam os jogos da seleção em parceria. Paulo levava o uísque, Alberto
providenciava as comidinhas. Se a vitória convencia, ficavam eufóricos, se abraçavam.
Se o jogo estava ruim, debochavam de tudo. Encarnavam um no outro, recordavam
as sacanagens de crianças, o tempo gasto com as revistas no banheiro, o
troca-troca de figurinhas, os concursos de volume e tamanho. Dormiam tarde,
ficavam cada vez mais tempo brincando dessas coisas. E cada um com as coisas do
outro...
"Não
quero mais esse negócio de você viver sem mim."
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Paulo e Laura, estudos |
E assim foi. Havia sempre um
motivo sério, uma dúvida comercial ou financeira que justificava um encontro
relaxante ao som do Homem de Bem. Quando ele, que já tinha despedido a secretária,
vinha consultar o tarô, ela tirava o poster do Che da parede. Ele trazia
incensos, encomendados de um site da
Califórnia, ela experimentava nele novos aromas dos seus óleos de massagem.
Ela, levantando a autoestima dele. Ele, capitalizando os melhores recursos
dela.
"Ah,
minha amada, me perdoa a tristeza que causei..."
Odete e Alberto se afastaram
por um tempo. Odete, sem conseguir escapar da mágoa, da sensação de conluio, da
doída quebra de confiança. Alberto, quase afogado em culpas, sofrendo pela
falta de tato, por tropeçar na própria ansiedade.
Afinal, Alberto ligou para
Odete, antes que fosse tarde demais. A empregada informou que ela tinha viajado
com Laura, "pra emagrecer num sítio". Ele deixou recado. Ela ficou na
dela. Quando ligou, ele estava de saída para ver um jogo com Paulo. Ela o
deixou por conta da secretária eletrônica por uns dias, para ele aprender...
Quando esqueceu e atendeu, era dia da festa de casamento de um empresário,
importante cliente de Paulo, ela tinha que ir. Foi a vez dela tentar, mas
Alberto combinara com Laura de ir a uma reunião importantíssima do comitê de
campanha do Vladimir Palmeira. Em suma, um período cheio de desencontros.
Embora a vida seja, eles sabiam, a arte do encontro...
Num sábado bem cedo, Odete,
caminhava acelerada pelo calçadão da Vieira Souto. Alberto, tomando água de
coco num quiosque, esperou sua aproximação. Ela não desviou. Ficaram frente a
frente. Retomaram a conversa do ponto em que deixaram, na última vez que
estiveram a sós. Não tinham tomado café. Foram ao apartamento de Alberto.
Experimentaram geleias e frutas, repassaram patês e manteigas, saborearam
baguetes e croissants. Voltaram a se
amar como antes, sem regimes ou rejeições...
E assim foi. E foi muito
melhor. Odete não falou mais em mudanças na bagunçada casa de Alberto, muito
menos em se mudar para lá... Alberto, amadurecido, prestava cada vez mais
atenção aos desejos de Odete. Os dias se misturando às noites, os dias se
animando como se fossem sábados, o tempo se esquecendo de passar...
"Que não seja imortal, posto que é chama,
mas que seja infinito enquanto dure."
mas que seja infinito enquanto dure."
E assim foi. Em vez de um
triângulo, um quadrado. Mas um quadrado arredondado, maleável, flexível...
Melhor dizendo, um quarteto. Cada
um na sua, nada fechado. Um quarteto fora de si. Às vezes, fora do
mundo...
Assim, todos ficaram sozinhos.
Só que "sozinho" passaria, então, a categoria coletiva...
Todos juntos na mesma solidão.
Um comentário:
Comentários da postagem original:
Poxa, GUINA, não acaba a história não. Eu curto todos os sábados a Odete. Quem sabe ela não vai morar em Fortaleza e a história continua lá? Beijinhos (Bárbara França)
Guina, como sempre muito bonito o texto. Gosto da descrição dos detalhes e imagens cheios de poesia, e da delicadeza e sensibilidade na abordagem dos labirintos da emoção humana. As fotos também são ótimas e muito condizentes com o clima do texto. Fico aqui imaginando umas três ou quatro possibilidades para o final da história! Solta logo o último capítulo! Obs: Vou deixar pra comprar o “Rio de Amores” só depois de ler o último capítulo que é pra não cortar a onda! Beijos (Perla Nanchery)
A véspera é excitante, porque ela precede. Porque é o que sabemos, e o que não sabemos. É o que esperamos. Almejamos, queremos, mas que ainda não temos. Exatamente por isso é muito, muito excitante. ESSA É A MAGIA DO SÁBADO... Bj gd amigo querido. (Joana)
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